Wanessa Carla Rodrigues Cardoso


A FEMINIZAÇÃO DO MAGISTÉRIO PRIMÁRIO


A vinda da Família Real em 1908, inicia o processo de institucionalização e da profissionalização do trabalho docente no Brasil: cria-se a Lei Geral do Ensino 1827, que permite a mulher o direito de instrução com conteúdo diferenciado dos homens, intensifica-se a laicização e a normatização do ensino e estipula-se a criação de Escolas Normais, décadas de 30 e 40 do XIX, voltadas a formação adequada de professores para atuação no ensino primário nas províncias.

Segundo Vilela (2010), a primeira Escola Normal foi criada em Niterói em 1830 tinha como critério de admissão ter “boa morigeração” (idoneidade moral), ter idade superior a 18 anos, saber ler escrever. A idoneidade moral era o requisito de maior importância pois esse professor seria um agente da manutenção da ordem e da moralidade. As Escolas Normais tinham como missão “elevar o nível intelectual e moral da população, unificando padrões culturais e de convivência social”. (VILELA. 2010, p.104).

Averiguar sobre a conduta moral dos candidatos ao magistério, continuou sendo um requisito que permaneceu desde as primeiras regulações de 1827, até meados do XIX. Segundo Schueler (2005) esse quesito permanece, pois, “a moralidade indispensável, ao exercício da docência, e à consolidação de determinadas representações sobre o professor, que se esperava engendrar”. (SCHUELER, 2005).

As Escolas Normais pensadas inicialmente por homens e para homens, não previam a presença de alunas. Somente a da Bahia (1836) e São Paulo (1846) mencionava-se um curso para mulheres que na verdade não chegou a ser implementado. Apenas nas décadas de 60 e 70 com sua recriação ou refundação dessas instituições as mulheres começaram a ganhar espaço no magistério. Com resistência inúmeras restrições o público feminino passou a ser atendido em prédios separados ou em dias e horários diferenciados dos homens.

Com a necessidade de tutores e professores do mesmo sexo que seus alunos, a formação de professores do sexo feminino passa a ser uma necessidade. O currículo de estudo e formação feminina era diferenciado do masculino, elas teriam que se dedicar à costura, ao bordado e à cozinha, enquanto eles dedicavam-se a estudos específicos como o de geometria. As professoras eram isentas de ensinar geometria, mas essa matéria era critério para estabelecer níveis de salário, portanto, reforçava-se com isso a diferença salarial entre professores e professoras. As mulheres, desta forma, passam a ter o direito à instrução, porém essa mesma instrução visibilizava ainda mais as diferenciações e discriminaçao de gênero.

Para além dessas questões expostas anteriormente, no processo de ingresso ao curso, as mulheres eram ainda obrigadas, mais que os homens, a atestarem sua ética e bons costumes. Tratava-se de uma supervalorização da moral, que possuía o objetivo de tornar o ensino das mulheres voltado não à instrução, entendida como formação intelectual, mas como uma tentativa adicional de disciplinar sua conduta. Neste sentido, segundo Catani:

“A ênfase do ensino feminino [era] nas boas maneiras, nas técnicas, na aceitação da vigilância, na aparência, na formação moralista. Coisa adequada quando o ensino fundamental se destinava às classes populares, pois o que estava em jogo não era difundir as perigosas luzes do saber, mas disciplinar as condutas e refrear a curiosidade.” (CANTANI, 1997, p. 28).

Os discursos que predominavam eram de que, pela inferioridade feminina, uma instituição para mulheres seria um desperdício de verbas públicas desnecessária, manter uma instituição de mulheres não tinha sentido e nem utilidade e permitir que as mulheres tivessem acesso as mesmas escolas que os homens era algo que atemorizava a sociedade, pois iam contra os princípios de moralidade. Somente em 1880, quando os alunos em sua grande maioria eram do sexo feminino, houve a fusão das duas escolas, ressaltando-se com saídas diferenciadas para homens e mulheres e vigilância atenta.

Responsável em transmitir esses ensinamentos morais aos seus alunos, a professora, deveria provar a todo momento que estava em condições de assumir esse papel, assim sendo, o menor desvio de conduta colocava sua credibilidade e seu papel de missionária da pátria em xeque. Lúcia Muller nos aponta os ensinamentos que deveriam ser direcionados pela professora primária, como “vestal da pátria”, e transmitidos ao alunado e futuro cidadão desse país.

“O bom comportamento na casa e na rua, respeito e consideração aos outros, principalmente aos mais graduados; amor ao trabalho; amor ao dever, o amor aos pais; o sentimento de caridade; a aversão a mentira; a aversão aos jogos; a aversão aos vícios e da bebida e do fumo etc.” (MULLER, 1999, p.111).
Portanto, o controle sobre seus hábitos, possíveis vícios, sexualidade, forma de vestir, sobre pratica docente, as dificuldades de ascender na profissão, os homens normalmente conseguiam mais prestígio na careira docente, especialmente por serem considerados melhores lideres, exercendo cargos de direção e mando, são consequências desse processo, e da construção de uma concepção inferiorizada do feminino.

Segundo Villela (2010) o discurso da moralidade vai assumindo significado mais complexo ao se cruzar com os discursos higienistas e positivistas, além disso passa a constituir-se uma opção ante a profissões menos prestigiadas como costureiras e parteiras ou mesmo ante um casamento forçado, proporcionava uma certa liberdade e a possibilidade de instrução, neste sentido uma alternativa possível em um determinado contexto histórico.

A feminização precoce do magistério tem sido responsabilizada pelo desprestígio social e pelos baixos salários da profissão, o que fez com que os homens abandonassem o magistério se deslocando para profissões de melhor prestigio e status social (TANURI, 2000). Entretanto  é necessário considerar, a ampliação do espaço urbano e o aumento populacional nas primeiras décadas do século XX, que ampliou as diversas formas de atuação no mundo do trabalho; A necessidade imperiosa da república em afirmação e ampliação do ensino primário e em consequência aumentar  a quantidade de professoras aptas atuar por um baixo salário; A construção de uma concepção da profissão docente associada a características femininas e a consequente relação entre as funções maternas de gerar e cuidar das crianças e a inata tarefa de educar; O magistério passa a ser o único caminho possível as mulheres, sendo uma extensão das tarefas do lar; E que a precarização e os baixos salários sempre estiveram presentes desde  o início da constituição da profissão docente no Brasil.

Mesmo com as modificações operadas e a feminização do magistério sendo um fato já no final do XIX, a condução  da  educação  não  era  exercida  pelas  mulheres, a estrutura da mesma, os cargos administrativos e de liderança, de regulação e controle, como de inspetor, eram geridos por homens estando ainda a mulher relegada a um plano secundário, perpetuando velhas práticas de submissão próprios de uma sociedade patriarcal, assim continuavam a regulação e o controle sobre a prática profissional das professoras e de sua conduta moral. 




REFERÊNCIAS 

Wanessa Cardoso é Professora Ad4- SEDUC/PA; Mestre em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da UFPA (PPGED) ; Doutoranda no programa de pós-graduação em História da Universidade Federal do Pará (PPHIST).

CATANI, D. et al. História, Memória e Autobiografia da Pesquisa Educacional e na Formação. In: CATANI, D. et al. (org.) Docência, memória e gênero: estudos sobre formação. São Paulo: Escrituras Editora, 1997

MULLER, Lúcia. As construtoras da nação: professoras primárias na Primeira República. Niterói, Intertexto, 1999.

SCHUELER, Alessandra Frota De. De mestres-escolas a professores públicos:              histórias de formação de professores na Corte Imperial. Educação Porto Alegre – RS, ano XXVIII, n. 2 (56), p. 333 – 351, Maio/Ago. 2005. Disponivel em:http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/faced/article/view/421

TANURI, L. M. História da formação de professores.Revista Brasileira de Educação. Mai/Jun/Jul/Ago, 2000, nº 14. Disponível em:  www.anped.org.br/rbe/rbedigital/RBDE14/RBDE14_06_LEONOR_MARIA_TANURI.pdf. 

VILLELA.Heloisa de O.S. O Mestre Escola e a Professora. In: 500 Anos de Educação no Brasil/org: Eliane Teixeira, Luciano Filho, Cynthia Veiga-4 ed- Belo Horizonte: Autêntica, 2010.



14 comentários:

  1. Uma observação, acho que na digitação você se equivocou e colocou 1908 e não 1808 (primeira linha). Li o seu trabalho traçando um paralelo com uma aula que tive recentemente, que tratou do processo de escolarização das mulheres, mas na Europa. Como passou a ser visto como algo importante, porque a mulher tinha que saber ser uma boa esposa e uma boa mãe. Essa imagem de cuidadora e responsável pelos ensinamentos da conduta moral parece ser um ponto de intercessão entre esses processos. Gosto bastante da temática, bom texto!
    Millena Luzia Carvalho do Carmo

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    1. Muitíssimo obrigada pela leitura e pela oportunidade de correção da data, Millena.

      A vinda da família real portuguesa para o Brasil foi em 1808, iniciando, através da Lei Geral do ensino, e de mecanismos de formação docente, como a criação das Escolas Normais, a institucionalização da profissão docente no Brasil.

      No Brasil, esse papel de cuidadora e educadora (responsável pelos ensinamentos cívico-morais-religiosos) direcionado a mulher, ganha espaço com República. A missão civilizatória atribuída às mulheres fez crescer, entre políticos e intelectuais republicanos como José Veríssimo, o debate sobre a educação nacional e questões sobre a educação de meninas em particular. Esse importante papel das mulheres como condutoras morais da ordem social, levara a sua necessária instrução, que deverá ser geral e simplificada em relação a do homem, porém necessária pelo seu papel e importância no projeto educacional republicano.

      Abraços

      Wanessa Cardoso

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  2. Muito bom texto. Meu questionamento é: sabe-se que ainda hoje essa feminilização do magistério primário ainda existe, porém de outras formas. Por exemplo, ainda persiste a predominância de pedagogas no ensino infantil, e no ensino fundamental I. Ainda há uma "desconfiança" em relação a homens exercendo a educação de crianças nessa faixa etária. Essa é uma questão muito complicada, pois os pais geralmente não se sentem a vontade de deixar sua filhinha aos cuidados de um profissional do sexo masculino. Diante disso, como você percebe essa feminilização do magistério no educação infantil e nas series inciais do ensino fundamental?
    Atenciosamente,
    Alexandra Sablina do Nascimento Veras

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    1. Muitíssimo obrigada Alexandra pela leitura,

      Sem dúvida. Penso, que a “desconfiança” do homem como cuidador e educador, seja em virtude do papel historicamente construído para cada gênero, e das diferenciações e desigualdades decorrentes desse processo. As mulheres ainda associadas ao zelo, ao cuidado com os filhos, com a casa e com a educação da criança, e os homens associados a cargos de maior prestígio e status sociais. A “desconfiança”, a meu ver, é em virtude das amarras dos papeis construídos para homens e mulheres, tudo que foge desses estereótipos, e do comportamento tido como aceitável, gera resistência e também violência, intolerância, machismo etc. Nos cabe desconstruir esses estereótipos em espaços que historicamente foram de reprodução, como a escola e a família, suscitando discussões de gênero, sobre as relações de poder que envolvem os papeis estabelecidos para cada sexo, e suscitando uma educação que promova a igualdade e que contribua para uma sociedade de oportunidades iguais para todos.

      Grata pela pergunta, espero ter ajudado nessa reflexão.

      Wanessa Cardoso

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  3. Olá Wanessa, você é de fato excelente em suas narrativas.

    Sobre essa feminização da educação do século XIX, é curioso perceber que as regras, costumes os valores sociais que foram e continuam sendo impostos por homens de como as mulheres devem ser. Ao mesmo tempo que entendo como delicado um homem tratar dessa temática.

    Sobre a minha pergunta, nas suas experiências enquanto educadora, você poderia citar uma experiências que você sentiu os reflexos dessa feminização, no tocante ao que você deveria ser enquanto educadora?

    Lhe convido também a participar comentando ou perguntando no meu trabalho que está na Mesa "Ensino de História", intitulado "Ensino de História e os indígenas (in)visíveis: A narrativa regional paraense..."

    Cordialmente,

    Vinícius Machado Ferreira.
    Belém-Pa.

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    1. Muitíssimo obrigada Vinícius pela leitura e comentário, bom tê-lo por aqui.

      Como professora da rede pública do estado do Pará, no ensino fundamental e médio, já encontrei uma grande quantidade de homens atuando nesses segmentos de ensino, nas mais diversas disciplinas. No entanto, as questões de gênero, as relações de poder que permeiam essas relações na sociedade, também se fazem presente no espaço escolar. Professor tomando para si ideias e projetos pensados por professoras, sem dá o devido crédito, interrupções em reuniões, questionamentos da competência de mulheres professoras por ocuparem posição de mando, são algumas, entre outras situações que já vivi e já presenciei em meus quase quinze anos de profissão. O mundo nunca foi fácil para as mulheres. Tenho certeza que quase a totalidade das mulheres já vivenciaram situações parecidas nas mais diversas profissões, e foram vítimas de um cotidiano de silenciamentos, violência (simbólica ou não) e opressão. Vítimas do machismo estrutural que permeia nossa sociedade.

      Espero ter respondido sua pergunta.

      Li seu texto e recomendo muitíssimo, parabéns.

      Grande abraço

      Wanessa Carla Rodrigues Cardoso

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  4. Nossa! Muito bom! E trazendo para os dias atuais, mesmo com os baixos salários e o desprestígio social, é muito comum aqui na região onde moro (noroeste de MT) professoras assumindo a condução financeira de suas respectivas famílias. Em muitas situações é a única fonte de renda.
    Um abraço,
    Celimara Solange da Silva Orlando Curbelo.

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    1. Obrigada pela leitura e comentário Celimara,

      Compreender o processo de constituição da formação docente no Brasil, processo nada fácil, cheio de lutas, conflitos, embates e disputas, nos ajuda a entender as raízes de muitos problemas vividos pelo professor hoje em sua atuação profissional e a desmitificar a ideia de que o desprestigio e os baixos salários dos professores são próprios do tempo presente.

      Um abraço,

      Wanessa Carla Rodrigues Cardoso

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  5. Olá Wanessa.

    Apesar de estarmos falando de um número restrito de mulheres, ou seja, daquelas pertencentes às famílias mais abastadas da sociedade; considerando a citação de Catani (1997, p. 28) presente em seu texto; como você vê o processo de escolarização feminina na época? Como uma conquista para as mulheres ou simplesmente uma forma de "frear" ainda mais os avanços femininos no meio social, já que o ensino na época era repressor e moralizante?

    Abraço,

    Danila Gomes Corrêa.

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    1. Danila, muitíssimo obrigada pela leitura e pela pergunta.

      Como nos mostra Catani (1997), a defesa da educação feminina por intelectuais republicanos (o que não era uma unanimidade, muitos acreditavam que o investimento na educação de mulheres era um desperdício de verbas públicas), tinha seus limites. Ela deveria ser uma educação elementar, simplificada em relação a dos homens, e com cunho disciplinador e moralizante, para a formação de cidadãos pátrios. Com a defesa e ampliação da escolarização como um todo, tendo como foco no ensino primário, destinado as classes populares, a quem se queria disciplinar, cresce também a necessidade de mão de obra para suprir essa demanda, e as mulheres passaram a ser a alternativa mais viável para muitos republicanos “graças a sua natureza educadora”.

      Ao mesmo tempo, a educação feminina (vedada ainda no ensino superior), o direito ao voto, a ampliação do mercado de trabalho e qualificação para o mesmo, para garantir autonomia, era uma reivindicação das mulheres no final do XIX e início do XX. Assim, a escolarização, a qualificação, e exercer o ofício de ensinar foi uma conquista feminina, mesmo sendo um avanço sutil no espaço profissional, ser professora passou ser uma alternativa para as mulheres de classe média de auto sustento e de autonomia. Segundo Almeida “a possibilidade de profissionalizar-se, via magistério primário, era um meio de as mulheres poderem vislumbrar uma chance de sustento sem a obrigação do casamento ou a humilhação de viver da caridade alheia” (ALMEIDA, 1998, p.37). Desta forma, não foi uma concessão masculina, ao contrário, foi objeto de resistência masculina, tanto dos professores homens que não queriam perder espaço profissional, quanto dos maridos que queriam as mulheres nos lares. O grande temor de desestabilizar a ordem social, fez com que nada fosse fácil nesse caminho da escolarização e profissionalização docente feminina, daí a ênfase em uma educação elementar (simplificada) e com ênfase na moralidade.

      O livro de Jane Almeida é bem interessante para nos ajudar nessa reflexão:

      ALMEIDA, Jane Soares de. Mulher e educação: a paixão pelo possível / Jane Soares de Almeida. - São Paulo: Editora UNESP, 1998. - (Prismas)

      Abraços,

      Wanessa Carla Rodrigues Cardoso

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  6. Este comentário foi removido pelo autor.

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  7. Parabéns pelo seu texto. Muito interessante o seu artigo para entender a trajetória de como o magistério tornou-se uma profissão feminina. Eu tinha conhecimento sobre a experiência, já que fiz magistério, e também trabalhei em um centro de educação infantil. Realmente são muito poucos homens que trabalham nestas fases do ensino aprendizagem. Muito importante entender como foi feita essa construção social.

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    1. Muitíssimo obrigada pela leitura e comentário Milena. Grande abraço!!

      Wanessa Carla Rodrigues Cardoso

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  8. Parabéns pela escolha do tema Wanessa! Um ponto em particular me chamou a atenção em seu texto, que de certa forma aproxima-se do meu apresentado nessa mesa, é que como responsável por transmitir valores morais aos seus alunos, a professora deveria provar estar apta para tal cargo. Verificamos tal exigência estendida a mulher de uma forma geral em se tratando do século XIX, o que perdurou até o século XX. Você também citou que os discursos sobre a moralidade tornaram mais complexos ao cruzarem com o higienismo e o positivismo. Sendo assim, você acredita que em dado momento tais movimentos ideológicos (se é que podemos denominar assim)tenham sido de fato, os principais condutores desses discursos?Obrigada,

    Cássia Regina da as. Rodrigues de Souza

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