Sara Fernanda Zan e Christian Fausto Moraes dos Santos


O CORPO FEMININO SOB OLHAR DAS PARTEIRAS, O OFÍCIO DO PARTO E OS CUIDADOS ESPECÍFICOS DE GÊNERO


Compreendendo que a ciência médica foi adaptando-se no decorrer da história, o presente trabalho intenciona adentrar na área da medicina popular, que auxiliava nos atendimentos e tratamentos de patologias de determinadas camadas da sociedade. Especificamente as conhecidas como “madames do parto”, essas comadres dedicavam-se aos cuidado,não somente no momento do parto, mas também noacompanhamento de mulheres no desenvolvimento e após a gestação, e nos cuidados das patologias do gênero. Isto posto,será abordado o conhecimento que estas comadres tinham a respeito do corpo feminino, e suas influências tanto da medicina européia quanto da medicina popular.

O papel das parteiras nos ofícios de cura
Ao longo do século XIX os ofícios da cura, ou a também conhecida como medicina popular, foi influenciada por uma onda de mudanças que começaram a emergir a partir de 1808, com a vinda da família Real Portuguesa para o Brasil. As artes médicas não permaneceram constantes durante o decorrer do século ou após esse, tendo alterações quanto aos saberes e conhecimentos que eram difundidos e conjuntamente com uma mudança no contexto social e profissional com a regulamentação desses ofícios. O que já era conhecido e transmitido na Europa começou a ser também no país, principalmente no Rio de Janeiro. Os novos conhecimentos científicos, o desenvolvimento de áreas como biologia, química, física e o maior estudo da anatomia humana tiveram impacto nos saberes da época. Nesse desenvolvimento científico, houve uma maior abertura para o estudo do corpo feminino, possibilitando a ruptura de concepções então consideradas ultrapassadas, a manutenção daquelas bem-sucedidas e a adoção de novas visões com influência da área médica, biológica e química.

Os ofícios de cura incorporaram novas perspectivas em saúde, com influências da medicina acadêmica europeia. No caso específico das parteiras, e aqui em foco as parteiras diplomadas, estas foram se adaptando para o novo meio, com formação em cursos e acompanhando os novos saberes médicos. Dessa forma, métodos e conhecimentos principalmente europeus, instalaram-se no antigo modo de cuidados, ampliando as práticas terapêuticas para além do já conhecido. O trabalho das “comadres”, outra denominação para as parteiras, ia além de auxiliar no parto, ao contrário do que se pensa. Este ofício, não era somente buscado em casos de gestação. Obviamente, para essas funções havia maior procura. Entretanto, as comadres também incluíam, em sua lista de serviços prestados, o cuidado da mulher, seu acompanhamento durante e após a gestação, tratamento das patologias que acometiam exclusivamente mulheres, o cuidado do feto e até mesmo registros das que auxiliavam em abortos. 

As parteiras, tinham ampla atuação junto à sociedade. Por pertencerem a um grupo de traços heterogêneos, estas foram diversificando-se cada vez mais. Algumas dessas madames do parto eram formadas em cursos acadêmicos e tinham o diploma validado pela Faculdade de medicina do Rio de Janeiro, formavam o novo perfil das madames do parto. Essa nova subclasse, incluía tanto as parteiras recém-formadas quanto as estrangeiras que praticavam o ofício no país de origem, mas que haviam acabado de chegar ao Brasil. Essas comadres divulgavam seus trabalhos por meio de periódicos e manuais. Tais fontes nos dão uma base de distinção desse amplo grupo, sendo citados em anúncios as especificidades do trabalhos de cada uma, bem como suas qualificações; além de métodos comumente utilizados, estabelecendo o que pode ser visto como um padrão de cuidados dentro desse campo. Essas técnicas do ofício da parturição são fundamentais para a compreensão do contexto médico em que existiram, apresentando por meio dessas, a prática das parteiras e suas responsabilidades no cuidado das mulheres e seus filhos. Segundo a autora Maria Lúcia Mott (2005), a relação de parteira e parturiente era importante e afetiva pois causava maior segurança e confiança na profissional, e tinha grande valor atribuído. Entre instruções presentes na fonte, descreve-se a importância do cuidado com a mulher, e é evidente que mesmo para aquelas parteiras que não eram letradas ou não tinham instrução médica, a saúde da mulher era prioridade no ofício da parturição.

As áreas de obstetrícia tiveram maior desenvolvimento a partir da metade do século XIX, e o ofício da parturição foi o palco de rivalidades quanto ao campo de trabalho. Tendo clara a especificidade de que, mesmo sendo áreas semelhantes, a instrução recebida pelas parteiras e os conhecimentos ensinados para os médicos em meios acadêmicos além de distintos, tinham intuitos diferentes. Em consequência, a profissão de parteira começou a ser marginalizada no decorrer do século para, posteriormente, ser substituída pela obstetrícia. Esta desvalorização das parteiras e ao mesmo tempo a valorização do médico na sociedade foi sendo feita a partir de um discurso cientificista e a consequente construção de limites para o domínio do saber e da prática. Deste modo, as parteiras continuaram a exercer seu ofício, auxiliando os partos, acompanhando as mulheres durante e após a gestação, mas contando com a presença de médicos regularizados no mesmo ambiente. Passaram então a realizar seu trabalho dentro de restrições e subordinadas à autoridade de médicos acadêmicos. O papel das madames do parto foi marcante, pois iniciou a prática de cura específica para as mulheres, antes mesmo do corpo feminino ser alvo de estudo de uma área médica específica.

Os médicos buscaram monopolizar o ofício que era exercido por essas mulheres há tempos, todavia não deve-se pensar que não existiram apoio entre as duas áreas. A medicina obstetrícia e a arte da parturição auxiliaram no estudo do corpo por meio de novas abordagens, ressaltando as diferenciações de gênero. O estudo do corpo feminino foi modificando-se para identificar e tratar as patologias advindas do próprio gênero, tendo como principal motivador dessas mudanças a visão da mulher como a responsável no que acreditava ser sua função, a reprodução. Apesar de diferenças entre as profissões, a partir da construção de alas de Maternidade em Hospitais, os atendimentos prestados não eram compostos somente por médicos. Por vezes, ao achar que a experiência de parteiras diplomadas era necessária, estas eram requisitadas para o trabalho.

A visão do corpo feminino
Pretende-se analisar, como prenuncia o título desta pesquisa, o trabalho das parteiras, ou comadres, e seu papel no estudo do corpo da mulher. Por esse meio será brevemente descrito como era tido o funcionamento do corpo feminino, bem como as visões mantidas da teoria hipocrático-galênica no meio médico e da saúde, além da adição de novos conhecimentos. Não obstante, contextualizando como, no decorrer do século XIX, diversas mudanças no meio da saúde influenciaram diretamente nessa prática, levando a mesma a ser desvalorizada. Utilizando-se da fonte documental analisada, um manual de parto escrito em 1830 no Rio de Janeiro.

O funcionamento do corpo da mulher dependia essencialmente da madre. O útero é visto como o relógio da saúde das mulheres. Segundo o que, a saúde da mulher dependia do ciclo menstrual. Assim a sua boa saúde era determinada pela regulação desses menstruos. O que é visto na fonte documental estudada, um manual de parto, é que a madre possui suas especificidades, desde antes de seu período de puberdade, após este, durante a gravidez, e após a mesma. Em diversos momentos a fisiologia feminina poderia ser alterada em caso de irregularidades, como em gestação, infertilidade, ou durante o período dos menstruos; estas eram acompanhadas pelas parteiras para que depois do parto voltassem à normalidade. Assim como, em casos de patologias, exames pelo tato eram feitos. Dependendo do diagnóstico, as indicações pretendiam tratar e auxiliar no que fosse possível para um retorno da saúde da mulher. Preconizava-se que as mulheres eram afetadas não somente pelas patologias que acometiam os homens, mas ainda tinham as patologias específicas determinadas pelo seu gênero.

CONSIDERAÇÕS FINAIS
Em vista do que foi exposto, a constituição dessa área ginecológica no século XIX não restringiu-se apenas ao ambiente médico, integrando também outras classes, como a das parteiras. Analisando o contexto em que a fonte está inserida, o Brasil no século XIX, percebemos a transição e o desenvolvimento de novas práticas de cura. As inovações da medicina tornaram-se mais evidente na segunda metade do século, mas suas influências atingiram não só o meio médico legal, como as práticas que permeavam as medicinas populares. As comadres, que estavam inseridas como atuantes no cuidado da saúde feminina, foram a vanguarda em um campo de atuação que só depois especializou-se e tornou-se parte da área médica.

Posto isto, vê-se as especificações do estudo e visão do corpo feminino através do saber das chamadas madames do parto e dos ofícios da parturição, que englobava saberes médicos da medicina europeia e, também, da medicina popular. E assim, observando o que era tido como saber das patologias associadas ao gênero, e como a chamada madre – o órgão reprodutor da mulher – era pela ciência da época.

 REFERÊNCIAS
Sara Fernanda Zan é graduanda de História na Universidade Estadual de Maringá (UEM), e desenvolve um Projeto de Iniciação Científica (PIC).  E-mail: zansaraf@gmail.com
Christian Fausto Moraes dos Santos tem graduação em História pela Universidade estadual de Maringá (UEM), mestrado em Geografia pela UEM, doutorado em Ciências da Saúde pela FIOCRUZ e pós-doutorado pela CSIC, Espanha. Atualmente é professor associado e pesquisador da Universidade Estadual de Maringá (UEM).

ANDRADE LIMA, T. Humores e Odores: ordem corporal e ordem social no Rio de Janeiro, século XIX. História, Ciências, Saúde - Manguinhos, II (3): 44-96, Nov. 1995-Fev. 1996.
CORBIN, Alain; COURTINE, Jean-Jacques; VIGARELLO, Georges (Org.). História do Corpo: Da revolução à Grande Guerra. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 2012.
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade 1: A vontade de saber. Rio de Janeiro/São Paulo, Paz e Terra, 2017.
MOTT, Maria Lucia. Parteiras: o outro lado da profissão. Gênero, Niterói, RJ, v.6, n.1, p. 117-140, 2 sem. 2005, p.126.
SHORTER, Edward. A History of Women’s Bodies. U.S.A: Basic Books, 1982.
VIEIRA, Elisabeth Meloni. A Medicalização do Corpo feminino. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2002.

14 comentários:

  1. Olá Sara, seu trabalho é fantástico e está muito próximo da pesquisa de mestrado que estou desenvolvendo também na UEM, sobre as parteiras e benzedeiras no Vale do Ivaí paranaense no período de 1960-1990. É um campo de pesquisa muito interessante. O seu trabalho aborda as parteiras diplomadas que já tem uma determinada formação e informação sobre saúde e o corpo da mulher. O interessante é a relação que percebi entre as parteiras diplomadas e as que estão ligadas ao conhecimento comum, que no caso, fazem parte de minha pesquisa, as duas categorias tem um olhar sensível para o corpo da mulher, um cuidado especial com o corpo, com a saúde feminina e com o bebê, antes e após o nascimento. As parteiras mantinham uma relação mais próximas com as mulheres do que a desenvolvidas pelos médicos, devido ao fato de estarem, na maioria das vezes, presentes no mesmo espaço de vivência das mulheres gestantes, o que ampliava os laços de intimidade entre a mulher gestante e a comadre parteira.

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    1. Olá! Agradeço o comentário e queria dizer que vi e li seu trabalho por ser um tema similar e também achei muito bom e interessante. É muito importante ver esse trabalho que as parteiras tinham, com regulamentação e formação ou não. O papel delas no cuidado do corpo feminino foi pioneiro e a relação não era somente profissional, tendo um cuidado que tornava o trabalho delas diferente dos que posteriormente foi ocupado pelos médicos na area obstétrica e ginecológica.
      Sara Fernanda Zan

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  2. Sara, seu trabalho é muito interessante. Só não ficou muito claro para mim o que seria a "madre". Pelo seu entendimento desses manuais do século XIX "madre" seria o útero?? Além disso, você pensa que esse termo provinha do conhecimento popular ou era também utilizado nos cursos para parteiras e/ou médicos? Bárbara Carolina Medeiros de Tompa

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    1. Olá, agradeço o comentário e respondendo sua pergunta, sim, a madre que mencionei no trabalho refere-se ao útero, ou até ao órgão reprodutor feminino. No século XIX ainda se tinha a ideia de que os menstruos (menstruação) regulava a saúde do mulher, e a madre era primordial para entender e até relacionar a "boa saúde". A fonte que eu trabalho, um manual de parto, fala sobre a madre e sua função na saúde da mulher. Sara Fernanda Zan

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    2. Obrigada pela resposta! Desejo sucesso no desenvolvimento do seu trabalho. Bárbara Carolina Medeiros de Tompa

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  3. Boa noite Sara! Parabéns pelo trabalho, uma discussão relevante sobre os corpos femininos, saúde da mulher, dentre outros elementos elencados. Seu texto fala que os médicos buscaram monopolizar o trabalho que era feito pelas parteiras, mesmo tendo um diálogo entre ambos,a partir disso gostaria de saber como essa prática realizada pelas parteiras foram sendo ao longo do tempo resignificadas dentro da sociedade?
    Ass: Ana Cristina Rodrigues Furtado

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  4. Parabéns Sara e Christian pela escolha do tema. A Medicina do século XIX tem sido revisitada e tem se revelado um campo de estudo muito profícuo. Acho importante vocês mencionarem o nome da fonte que é citada no texto, um manual sobre partos, certo?uma outra dica para entender um pouco sobre o pensamento médico a respeito do corpo feminino nos Oitocentos são as teses da Faculdade de Medicina. Nelas encontramos temas como os mênstruos, citados por vocês, e como isso atuava na constituição da mulher. Nessa fonte podemos verificar também o posicionamento da comunidade médica de então em relação aos diversos profissionais da cura(dentre eles as parteiras)e sua tentativa de deslegitimar esses profissionais num contexto de institucionalização da Medicina. Por se tratar de um tema um pouco complexo pois, promove o diálogo entre os saberes dito populares e a Medicina oficial(acadêmica), e tendo em vista que a linha que dividia esses conhecimentos era muito tênue havendo sempre a interseção desses saberes, que outras fontes você (s) tem utilizado para analisar esse contexto?
    Cássia Regina da S. Rodrigues de Souza

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    1. Boa tarde Cássia, agradeço o comentário e as indicações feitas pois acredito que esses congressos são feitos justamente para essas trocas. Respondendo as pontuações, os manuais de medicina serão utilizados em um segundo momento da pesquisa, e principalmente os da Faculdade de Medicina de Olinda. A respeito do lugar das parteiras na discussão sobre a institucionalização da prática médica, temos de lembrar que o século XIX é um período de transição. Algumas práticas estavam sendo questionadas e expropriadas das parteiras, mas outras não. Mas a pesquisa visa justamente isso: delimitar quais Campos pertenciam à parteiras e médicos.
      Estou utilizando outros manuais, anúncios encontrados em periódicos e como já dito, utilizarei também esses manuais de medicina.
      Sara Fernanda Zan.

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  5. Boa tarde!
    Parabéns pelo trabalho e dedicação a esse tema.
    Bom, gostaria de saber se pelo viés da História do corpo, poderíamos, e de que forma, utilizar em sala de aula, o documento estudado por você (manual de parto escrito), como fonte de pesquisa para compreender e explicar a visão do corpo feminino pelas parteiras, e a colaboração delas na formação da área ginecológica.

    Desde já, obrigada pelo retorno!
    Raiely Godoi Melo

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    1. Boa tarde, agradeço o comentário. Respondendo a pergunta acho possível e interessante buscar trabalhar com o aspecto da saúde em sala, e poderia abordar o trabalho das parteiras e o estudo do corpo feminino a partir daí. O manual traz diferentes aspectos do que seria uma boa saúde, e como manter-se saudável, então a partir de exemplos dessas técnicas poderiamos aproximar o aluno desses saberes do século XIX. A análise da abertura pra entender a visão do corpo feminino na época com essas técnicas, métodos e conhecimentos a respeito do corpo.
      Sara Fernanda Zan.

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  6. Olá Sara, parabéns pelo trabalho!
    Minha dúvida é: o trabalho das parteiras diplomadas era o mesmo das não-diplomadas?
    Heloisa Raquel da Silva

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    1. Olá! Agradeço a pergunta. Respondendo a questão, não, não era exatamente igual o ofício das duas, devido a regulamentação as técnicas e meios foram sendo segmentados a área das diplomadas, todavia as parteiras não diplomadas poderiam ter os mesmos saberes.

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