AS IMAGENS DAS MULHERES NOS LIVROS ESCOLARES DA SÉRIE “INFÂNCIA” DE HENRIQUE RICCHETTI
Pensamos que, além de dar contornos à discussão sobre gênero, podemos promover a visibilidade de algumas relações que se configuram neste contexto. Nas diferentes sociedades e culturas, a condição da mulher está sempre relacionada às condicionantes socioculturais dadas.
Existem pontos comuns a todas as mulheres nas diversas culturas: de certa forma sofrem algum tipo de injustiça ou social, econômica, política e sexual. (ROSALDO, 1979, p. 17) É importante reconhecermos, ainda, que existe um aprendizado em torno do ser mulher; este papel atribuído ao sexo feminino foi construído ao longo dos tempos e aceito como forma natural para as mulheres, como os preceitos de que a condição feminina faz parte de uma dada natureza, como o ser mãe ou gerar uma nova vida. Diante deste mesmo “poder” que foi dado às mulheres, surgem admiração, medo e espanto, o que chegou a auxiliar a atribuir-lhes rótulos de bruxas ou deusas (Ibidem, p. 18).
Foram séculos de humilhações, perseguições, incompreensões – visões que permaneceram até serem quebradas por mulheres que decidiram enfrentar a ideologia que as subjugava, uma ideologia de cunho machista. Contudo, viam-se (e ainda permanecem) formas de organização social gerenciadas por homens que determinam seus valores como superiores, apregoam sua posição como sendo a suprema e a ser respeitada principalmente pelas mulheres, uma vez que estas foram consideradas inferiores em todos os países, evidenciando um maior ou menor grau de exploração da condição feminina. Segundo Rosaldo (1979 p. 19):
“Em todos os lugares vemos a mulher ser excluída de certas atividades econômicas e políticas decisivas; seus papéis como esposas e mães são associados a poderes e prerrogativas inferiores aos dos homens. Pode-se dizer, então, que em todas as sociedades contemporâneas, de alguma forma, há o domínio masculino, e embora em grau e expressão a subordinação feminina varie muito, a desigualdade dos sexos, hoje em dia, é fato universal na vida social.”
Ao ser relegada aos afazeres domésticos a mulher é excluída da participação numa lida pública, que implica tomar decisões, ter poder de decidir sobre sua própria vida, acessar a uma espécie de autoridade, nutrir valores culturais. Ou seja, ao sair dos limites do restritivo papel doméstico, altera-se a função social da mulher na sociedade. Rosaldo (1979, p. 25) fala de uma oposição universal entre os papeis doméstico e público, os quais são necessariamente diferentes. Quando a mulher encontra-se numa área de domínio público ela sofre retaliações, é vista como desviada, manipuladora, vista como exceção. A posição da mulher não é biologicamente determinada e sim culturalmente construída.
Este novo fazer histórico permite, portanto, verificar significados que podem ou não estar aparentes. Investiga a intencionalidade de se abordar fatos, acontecimentos e do contar a história de uma maneira singular apoiada nas relações de forças de quem detinha o poder.
O que contam os livros didáticos configura algo que vai além de palavras, orientações, prescrições ou métodos de ensino; desvela condutas socialmente construídas, modos de visualizar as pessoas, os costumes; sob nossa perspectiva, auxilia a revelar os pensamentos de uma dada cultura.
Os livros didáticos analisados expressam aspectos que estão no passado, mas que continuam, com maior ou menor intensidade, manifestos e atuantes no presente. E quem sabe, no futuro ainda permanecerão. É nesta relação temporal entre passado e presente que podemos delinear elementos importantes para nosso futuro.
A pesquisa que se utiliza da análise de documentos vinculados às instituições escolares, como é o caso dos livros didáticos, supõe uma série de percalços. O primeiro deles é justamente encontrá-los. Material consumível, descartável e até bem pouco tempo considerado de pouco valor acadêmico, os livros escolares não são fáceis de serem localizados, sendo raros os espaços destinados à preservação e à memória do livro didático (Choppin, 2002).
E, mesmo nos exemplares localizados faltam referências quanto ao número e à data das edições, das tiragens, sem falar naqueles que estão parcialmente danificados, sem capa, sem folha de rosto. Para fins de uma análise dos livros didáticos elaboramos uma classificação preliminar, de modo a agrupá-los conforme dois critérios: a série ou ano da escola elementar (primária) a que se destinavam e a disciplina ou matéria que veiculavam ou a qual se prestavam.
Tal classificação tem apenas um caráter didático. Trata-se, muito mais, como diz Choppin (2002, p.14), de enquanto pesquisador, analisá-los pela “riqueza e pela multiplicidade de olhares”. Pretendemos que os livros didáticos localizados permitam traçar um panorama sobre os hábitos, valores, comportamentos e identidades sociais, descortinando elementos para uma perspectiva de construção ideológica que se vincula ao gênero.
Analisamos agora um bloco de livros de leitura, denominados como série graduada, numa seleção composta por um total de 3 livros: o Segundo, Terceiro e Quarto livros da coleção “Infância” – Série Olavo Bilac, escritos por Henrique Ricchetti. A análise recai agora sobre apenas estes exemplares localizados em “sebos”, livreiros de livros usados, da coleção “Infância”, de Henrique Ricchetti, unidos da chamada Série Olavo Bilac.
Segundo Abbeg (2018, p.91): “Henrique Ricchetti nasceu em 17 de abril de 1901 em Bauru, formado na Escola Normal Caetano de Campos, ocupou o cargo de Diretor do Grupo Escolar de Lençóis Paulista, inspetor de ensino na região de Bauru, posteriormente à 1930 assume o cargo de delegado de ensino na Capital.” Iniciou sua atividade no magistério estadual paulista como professor de modesta escola isolada em uma vila em São Manuel, conhecida como Aparecida da Água da Rosa.
Figura 1 – Infância – 2º. Livro – Capa
Fonte: acervo particular da autora.
A capa colorida da série graduada “Olavo Bilac” faz menção a aprovação pela Diretoria de Ensino do Estado de São Paulo. O livro sendo aprovado pelo Estado, mesmo não garantindo sua aquisição pelo mesmo, serviu como uma espécie de selo de garantia sobre a obra, que seria comercializada nos diferentes Estados brasileiros aos quais a Companhia Editora Nacional possuía sucursais.
Figura 2 – Infância – p.22
Fonte: acervo particular da autora.
A presença feminina aparece na figura de uma professora defronte um quadro negro com um pedaço de giz explicando o calendário.
Figura 3 – Infância – p. 24
Fonte: acervo particular da autora.
Figura 4 – Infância – p. 41
Fonte: acervo particular da autora.
Por sua vez, o conteúdo formativo infantil que é traduzido pelas figuras 3 e 4, que dizem respeito à formação de hábitos e conformação moral.
Na capa dos três livros “Infância” a imagem representada é a mesma, alteram-se apenas as cores (fig. 1, 5 e 13). Encontramos uma menina que segura a mão de um menino, como se a irmã mais velha estivesse conduzindo ou zelando pelo irmão mais novo. Estão possivelmente uniformizados e este lembra a farda de um oficial da marinha. Os dois seguram livros no braço e estão andando, sugerindo a idéia que as crianças ao estudarem também estão em movimento, trabalhando para o crescimento do país, uma vez que nelas se depositam esperanças. No prefácio do 2º Livro encontramos o seguinte apontamento:
“Este volume destina-se às classes de 2 º ano. É um livro escrito em linguagem singela, dentro dos moldes mais aconselháveis ao seu fim: a consecução da leitura corrente. Desenvolvendo, através da narrativa, do conto ou do folclore, cenas familiares e comuns à vida infantil, procuramos, sempre que possível, dar a cada entrecho uma forma leve e atraente e um fundo instrutivo, sem, entretanto, fugir à finalidade em vista. Não será difícil ao professor transformar cada assunto em um centro de interesse, desenvolvendo-o de acordo com as modernas tendências da didática. Para auxiliá-lo nessa tarefa organizamos, ao fim de cada capítulo, uma série de exercícios que, habilmente explorados, darão margem ao desdobramento de um sem número de motivos novos sobre história, geografia, lições comuns, educação moral e cívica.” (RICCHETTI, 1947, p. 13).
Apesar da preocupação em informar o professor sobre o motivo de organizar este livro, não fica clara a função social da escola, ou seja, ela serve apenas para ensinar a leitura? Os tais exercícios que são propostos, nada mais são que algumas perguntas diretas, que não levam a reflexão, formar frases a partir de palavras dadas, exercícios para completar sentenças sem sentido, ordenar frases, separar sílabas, transformar palavras para o diminutivo, e uma série de outros exercícios que a princípio não tem significado algum, mesmo que a professora diga o que é para fazer.
Figura 5 – Infância - 3º. Livro - Capa
Fonte: acervo particular da autora.
Podemos verificar que no conteúdo desta obra, as representações da professora, do aluno e da aluna mantêm o mesmo padrão já detectado noutros livros didáticos.
Figura 6 – Infância – p.19
Fonte: acervo particular da autora.
A figura materna presente e constante no livro de Ricchetti era responsável por lhe fornecer “maternais conselhos”; sendo o menino tratado como “herói”.
Figura 7 – Infância – p.34
Fonte: acervo particular da autora.
A figura 7 demonstra a repreensão de um senhor idoso a uma jovem, que teria lhe perguntado sua idade.
Figura 8 – Infância – p.54
Fonte: acervo particular da autora.
Figura 9 – Infância – p.76
Fonte: acervo particular da autora.
Figura 10 – Infância – p.79
Fonte: acervo particular da autora.
A profissionalização da mulher, digo, do magistério primário (dos anos iniciais do ensino fundamental, já aparece nas imagens e discursos de Ricchetti. Encontramos a professora “Dona Geni” tomando café, quando lhe adentram a sala de aula. As salas de aula de escolas isoladas, denominação para escolas rurais afastadas dos grandes centros urbanos os quais ensinava-se as primeiras letras (no ensino paulista a Reforma Sampaio Dória propunha que as escolas isoladas fossem ensinados apenas primeiro e segundo anos do ensino primário). Estas escolas isoladas eram regidas por um(a) professor(a), em ambientes precários, quando não, em suas próprias casas. A figura 9, na página 76, alude a “paciência e habilidade” da professora “D.Júlia” para resolver de forma “harmoniosa os desavindos”. Na figura 10, temos a professora “D. Júlia” ensinando sobre grandeza das duas cidades mais populosas do Brasil: São Paulo e Rio de Janeiro.
Figura 11 – Infância – p. 107
Fonte: acervo particular da autora.
As cenas familiares são uma constante nos livros de Ricchetti, todavia a mulher e a menina sempre em ambiente reservado, privado, doméstico, enquanto o homem e o menino aparecem em ambientes públicas, pátios, rios, campos. Um reflexo do que se concebe como permitido para os diferentes gêneros. Uma das poucas exceções está na figura 11, quando “Zélia” corre até a esquina para esperar seu pai.
Figura 12 – Infância – p. 122
Fonte: acervo particular da autora.
Os afazeres domésticos, do ambiente privado são lugar privilegiado para atuação feminina. Na figura 12, observa-se a menina que procura a mãe para costurar seu vestido rasgado.
Figura 13 – Infância – 4º. Livro - Capa
Fonte: acervo particular da autora.
Figura 14 – Infância – p.11
Fonte: acervo particular da autora.
A última imagem que ora analisamos corresponde à figura 14. Aqui vemos o mapa do Brasil sendo apontado por um senhor de óculos. O mapa representando os limites e a divisão política dos estados brasileiros. As mensagens ideológicas que se pretende veicular traduzem sentimentos de inspiração nacionalizadora, com fim integrador:
“O sentimento de que a Pátria está aí, pronta, acabada em suas características, para ser amada, também é transmitido pelos textos. A mais freqüente forma de participação do povo brasileiro, na construção da Pátria, em conformidade com os textos, não vai além da ambígua expressão: ‘união entre irmãos’.” (NOSELLA, 1981, p. 100).
Figura 15 – Infância – p.69
Fonte: acervo particular da autora.
A figura 15, retoma a imagem da menina, agora de fronte o rádio. A menina denominada de “Cimar”, entra na sala para ouvir seu programa de rádio, notadamente uma novela; mas, não pode pois seu pai está ouvindo um noticiário que é “útil”. Desta forma, o divertimento da jovem é seu oposto.
Novamente os temas a serem trabalhados se repetem: a escola, a família, o trabalho, a Pátria, Nossa Bandeira, temas relacionados ao cotidiano da cidade ou do campo, a questão da higiene corporal e dos ambientes, a alimentação, as fábulas, contos, texto sobre as virtudes, personagens da história e preceitos religiosos.
Nas representações familiares, há como que dois sujeitos unidades distantes e divididos quanto a seus papeis: não se percebe uma unidade familiar, mas sim o pai ocupando um lugar definido e que não se conecta com os papéis da mãe/mulher, o mesmo acontecendo em relação ao lugar feminino que não se “comunica” com o universo masculino. Assim, nas imagens há uma separação proposta: o pai aparece em ambientes que lhes são característicos, porém só, ou em alguns casos acompanhado do filho e para a mulher o lar.
Há considerações e desdobramentos oriundos dessa trajetória investigativa, das quais não foi possível tratar com profundidade, mas que, mesmo assim, pedem para ser pensadas. Por exemplo, como mais um “retalho” a ser “costurado” nesta “colcha” que trata da imagem de menina e mulher historicamente elaborada, desvendaríamos as relações entre trabalho e educação, relacionadas com as principais profissões agregadas ao sexo feminino e masculino, buscando compreender nuances culturais e ideológicas presentes na carga imagética vinculada nesse importante suporte da cultura material da escola, o livro didático.
Referências
Samara Elisana Nicareta - Doutora em Educação (UFSC)
ABBEG, V. A. J. O.. Pro Brasília Fiant Eximia: nacionalismo e paulistanidade em livros didáticos aprovados no Estado de São Paulo (1911-1937). 189 fls. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade Federal de São Paulo, Guarulhos, 2018.
CHOPPIN, A. O historiador e o livro didático. História da Educação / ASPHE, Pelotas, Upel – Semestral, v. 06, n. 11, abril, 2002, p. 5-24.
RICCHETTI, H. Infância. Segundo grau. 179 ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1949.
RICCHETTI, H. Infância. Terceiro grau. 19 ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1951.
RICCHETTI, H. Infância. Quarto grau. 17 ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1951.
ROSALDO, M. Z. In: LAMPHERE, L.(org). A Mulher, a Cultura a Sociedade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.
O seu ponto é muito apropriado! A minha pesquisa, que não é sobre livros didáticos más com publicidade de bebidas trabalha um tema semelhante, em relação a construção cultural do feminino e as relações de forças de poder, que claramente mostravam nas peças publicitarias o “ideal da mulher” daquela época, sobre tudo em relação ao fato de “ser mãe” e “ser uma boa esposa”, aproveitando as “vantagens” dos produtos promocionados. Embora minha pesquisa seja mais desde a análise gráfica encontro pontos similares de trabalho com a sua pesquisa, e contribui para ampliar a minha ao outros cenários gráficos. Como eu sou designer, sempre vejo possibilidades de trabalho nas gráficas, e acho que as ilustrações sob as quais você trabalha tem muito potencial, poder ser analisadas pensando também no desenhista que as fiz, nos objetos que tem como apoio (o rádio, o mapa, a bandeira, as roupas, os penteados, etc) e na qualidade gráfica das mesmas... que também tem muito a ser dito. Gostei muito do seu trabalho!!!
ResponderExcluirMaria Isabel Giraldo Vasquez
A análise de imagem, associada ao discurso e práticas culturais próprias deste momento histórico contribuem para dinamizar as novas fontes, já evidenciadas pela nova história cultural. O trabalho em questão, um tanto resumido pela quantidade de palavras, fez parte da minha dissertação de mestrado, defendida em 2010, disponível no banco de dados da Universidade Tuiuti do Paraná. A visão de boa mulher, boa mãe, boa esposa, restrita no aspecto privado não se modifica nos livros escolares primários até a década de 1960, inclusive se tratando de autoras que participavam de movimentos feministas.
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