REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DO GÊNERO E DAS SEXUALIDADES ENTRE PROFISSIONAIS DA EDUCAÇÃO DA BAIXADA CUIABANA. ALGUMAS REGULARIDADES
1. Introduzindo o tema
A despeito do crescente fortalecimento dos movimentos sociais que lutam pela igualdade de gênero e pelo respeito às distintas sexualidades, infelizmente ainda hoje persistem no Brasil convenções, representações e imagens sociais que estão fundadas na exclusão, na hierarquia, na “patologização” de diferentes identidades, na expressão do preconceito, das discriminações sociais e violências contra estes sujeitos. A violência de gênero e a violência LGBTfóbica são as expressões mais destacadas e evidentes deste fenômeno, mas estão longe de serem as únicas, outras formas mais insidiosas e menos visíveis comprometem de forma significativa a qualidade de vida das mulheres e da população de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais (os LGBTs). Entre estas outras formas mais insidiosas de expressão do preconceito e discriminação sociais a que estes grupos estão sujeitos podemos citar especialmente o acesso desigual à educação, ao trabalho e a saúde, só para citar alguns exemplos da infinidade de comportamentos produzidos e reproduzidos em todos os espaços da vida social e que contribuem para o quadro de profunda desigualdade social que ainda persiste no país.
Como já discuti em trabalhos anteriores (Lopes, 2005, 2006; Lopes e Jeolás, 2008), estes fatos não se constituem em fenômenos de fácil análise e diagnóstico pel@s pesquisador@s visto que estão ancorados em um conjunto distinto de convenções, representações e imagens sociais construídos historicamente em nossa sociedade – não apenas nela diga-se de passagem – que associam a heterossexualidade como a única expressão “natural” da sexualidade e as demais sexualidades como manifestações do “pecado”, da “perversão”, da “doença”, da “anormalidade” e, por conta disso, fenômenos “problemáticos” que colocariam em xeque seus pilares fundamentais e que deveriam passar por processos de “recuperação”, de “correção”, ou de “cura”.
Particularmente, acredito que a mudança dessa realidade não se dará apenas com a formulação de leis antidiscriminatórias – apesar destas representarem uma grande e importante transformação social na realidade brasileira contemporânea – mas, igualmente, é fundamental a produção de conhecimento consistente baseado em pesquisas muito bem desenhadas e conduzidas que possam nos levar a compreender a forma como estes discursos dão respaldo a discriminação, ao preconceito e a violências baseadas no gênero e nas diferentes sexualidades, bem como a forma na qual estes se expressam cotidianamente. A meu ver, esta é uma das principais funções sociais da universidade – além de formar quadros profissionais competentes para atuar em um mundo competitivo – qual seja, compreender a realidade cotidiana na qual estamos inseridos e dar ferramentas para que as iniquidades, sejam elas quais forem possam ser superadas “produzindo” simultaneamente cidadãos críticos e preocupados com as desigualdades que assolam nossa realidade. Para alcançarmos essa função social, temos ao nosso alcance a possibilidade de lançarmos mão de uma série de ferramentas, a principal delas é o estímulo ao desenvolvimento do espírito crítico especialmente entre noss@s alun@s, mas não exclusivamente entre el@s.
Este espírito crítico têm de estar fortemente assentado na transformação das mentalidades, valores e práticas sociais que dão suporte a desigualdades e ao desrespeito pelos direitos de pessoas e grupos considerados “estranhos”, “diferentes”, “diversos” do que o senso-comum considera como a “normalidade social” vigente. E, neste ponto, vejo a educação – não importa a que grau estejamos nos referindo, se formal ou informal, se de ensino fundamental, médio ou superior – como instrumento essencial de mudança social e de luta contra as desigualdades sociais.
No que tange especificamente a nossa sociedade, ainda hoje permanece como um grande desafio construir na educação uma abordagem das desigualdades sociais que prime pela sensibilização das diferentes pessoas acerca da realidade social a que diferentes grupos estão sujeitos cotidianamente e, não apenas, pelo diagnóstico destas situações, e aqui cabe um parêntesis. Não me refiro exclusivamente às desigualdades que envolvem questões como as calcadas nas sexualidades e no gênero, meu objeto de investigação, mas, também, às desigualdades raciais, de classe, de etnia, religiosas, entre muitas outras.
A Antropologia, entre outras humanidades, tem muito a acrescentar nesta discussão visto ser uma ciência que surgiu tendo como objeto de estudo específico a questão da alteridade e a compreensão das distintas lógicas que organizam e dão sentido às diferentes visões de mundo. No entanto, seguidamente, seus conhecimentos historicamente produzidos têm sido objeto de desvalorização e depreciação muitas vezes sendo alçados a categoria de saberes militantes ou comprometidos com a visão de mundo do subjugados.
Por esta premissa, joga-se fora literalmente a criança junto com a água de banho, pois tal como nos mostram Judith Butler (1998), Donna Haraway (1995) e Sandra Harding (1996), entre outras autoras, no debate acerca da construção de uma epistemologia feminista é problemático acreditar que a Ciência seja absolutamente neutra, imparcial e baseada em uma noção de razão tomada como instrumento de percepção privilegiada da realidade. Esta concepção iluminista de Ciência Moderna, fundada na visão de que a racionalidade é capaz de oferecer fundamentos concretos, objetivos e imparciais para se construir um conhecimento “seguro” e “correto” da realidade “verdadeira” trata-se apenas de um “discurso de poder” construído para dar suporte ao discurso da ciência. Ao contrário disto, temos de pensar, tal como defende Haraway (1995), que todos os conhecimentos produzidos são “situados” (social, cultural e historicamente) e, deste modo, é inevitável que sejam parciais. Isto não implica que tenhamos de abandonar toda e qualquer possibilidade de construção do conhecimento, apenas temos de ter consciência que estes nunca são neutros e imparciais.
De modo contrário, também não podemos cair na tentação do relativismo ingênuo ou inocente descartando os conhecimentos produzidos historicamente pelas ciências, visto serem eles “implicados” tais como os outros saberes. Na visão de Haraway (idem, p. 26), analisar a partir do ângulo dos subjugados não implica a busca por uma “posição de identidade com o objeto, mas de objetividade, isto é, de conexão parcial”, visto que os posicionamentos dos subjugados não estão isentos de uma reavaliação crítica, de desconstrução e de interpretação.
Por esta perspectiva, a construção de conhecimentos e saberes acerca da realidade não pode, nem deve ser tomada como instrumento “neutro” e “imparcial” de apreensão de uma “realidade natural”, mas como um saber contextual, histórica e culturalmente implicado. E, a Antropologia, como uma abordagem preocupada com a construção de um saber baseado na compreensão e na tradução intercultural das distintas lógicas assume um papel essencial. Partindo desta perspectiva, construo minha análise acerca da “maneira pela qual” o gênero e as sexualidades vêm sendo tratadas como temáticas na formação dos profissionais de educação na baixada cuiabana, para isso partirei de experiências concretas de pesquisa e extensão já finalizadas.
2. Três experiências concretas
A primeira destas experiências foi o projeto de extensão intitulado “Sexualidade na Escola: atividades educativas com adolescentes” desenvolvido e coordenado pela Professora Neuza Cristina Gomes da Costa do Departamento de Saúde Coletiva (UFMT) e com minha participação no ano de 2012 em uma escola do ensino fundamental de Cuiabá, Mato Grosso. Esse projeto, que teve como público-alvo adolescentes entre 11 a 14 anos de idade que cursavam a sétima série do ensino fundamental, objetivava analisar as representações sociais destes adolescentes acerca das sexualidades por meio de diversas atividades e debates sobre a temática. Nesse contexto de atividades estabelecemos contato com diretores, coordenadores pedagógicos e docentes que nos traziam uma série de imagens e representações das sexualidades como questões problemáticas de serem trabalhadas na escola.
A segunda experiência é resultante do “I Ciclo de Oficinas de Capacitação do Gesex”, evento inserido nas atividades do projeto de extensão intitulado “Hierarquias, preconceitos e diversidades. A construção sociocultural do gênero” que teve como finalidade ampliar e fortalecer o diálogo entre comunidade acadêmica e sociedade – representada aqui por profissionais da educação, representantes e ativistas de movimentos sociais e estudantes universitári@s – no que tange à discussão da construção das hierarquias, dos preconceitos e discriminações que envolvem a temática de Gênero e Sexualidade, com o fim de se pensar em práticas educativas que primem pelo respeito às diferenças na sociedade contemporânea. As atividades do I Ciclo de Capacitação foram finalizadas em 2013 sendo desenvolvidas pelos integrantes do grupo de pesquisas (integravam na época o GESEX @s professor@s Flávio Luiz Tarnovski e Moisés Lopes, Ana Maria Marques, Neuza Cristina Gomes da Costa, Silvana Maria Bitencourt e Sônia Regina Lourenço pesquisador@s permanentes) e por mim, coordenador da atividade com o apoio da UFMT/PROCEV/CODEX e do Departamento de Antropologia/UFMT.
A terceira experiência foi o projeto de pesquisa coordenado por mim e intitulado “As imagens e representações sociais acerca do gênero e das sexualidades entre docentes do Ensino Médio de Cuiabá – MT” que teve como objetivo analisar as representações sociais e o imaginário acerca do gênero e das sexualidades “veiculadas” pel@s professor@s das disciplinas de Sociologia, Biologia, Ciências e Ensino Religioso de Escolas Públicas estaduais do ensino médio da cidade de Cuiabá com o fim de compreender como os mecanismos de construção da diversidade podem engendrar diferenças, hierarquias e preconceitos. Tratava-se de um projeto de pesquisa que foi desenvolvido com atividades de investigação e um financiamento do CNPq via CHAMADA UNIVERSAL – MCTI/CNPq Nº 14/2013.
Estas três experiências concretas de investigação e extensão nos colocou em contato com o cotidiano docente e de outros profissionais da educação que nos trouxeram um sem-número de representações e imagens acerca das questões de gênero e sexualidades, bem como a maneira pela qual estas são “tratadas” ou invisibilizadas no dia-a-dia das instituições de ensino em Cuiabá e que relatarei abaixo.
3. Alguns pontos de convergência
Antes de desenvolver tal análise é importante destacar que tais convergências foram expressas nas falas e conversas resultantes das atividades desenvolvidas por estes projetos, neste sentido, não tenho a intenção de identificar os sujeitos que emitiram tais falas ou em qual destas atividades estas foram expressas, visto que o objetivo é trabalhar com regularidades e não com especificidades. Deste modo, trata-se aqui de uma análise destas falas e conversas com o fim de problematizar algumas questões.
A principal recorrência expressa nas falas d@s profissionais da educação é a profunda necessidade de se discutir a temática do gênero e das sexualidades em espaço escolar. Tod@s acreditam e defendem que a escola tem um papel extremamente importante a ser cumprido no debate acerca destas temáticas trazendo informações e dados “acertados” que possam resultar no “esclarecimento” e na “educação” das futuras gerações. Assim, defendem que a temática seja “tratada” pelas diferentes disciplinas em espaço escolar tal como preconizado pelos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) desde 1998. Segundo os PCNs, o tema da orientação sexual constitui-se em questão transversal a ser abordada pelas diversas áreas do conhecimento que deve impregnar toda a área educativa desde o ensino fundamental – mas, especialmente, a partir da quinta série – ocorrendo seja dentro da programação das disciplinas ou, ainda, como atividades extraprogramação quando surgirem demandas relacionadas ao tema.
A grande maioria d@s professor@s com os quais tivemos contato no decorrer destas atividades ressaltam o surgimento de inúmeras demandas ou “eventos problemáticos” ocorridos nas escolas que envolviam questões de gênero ou sexualidades que requereram sua atenção ou intervenção. Uma das situações relatadas resultou na expulsão de dois alunos que durante uma atividade extra-programada na escola foram pegos em uma sala de aula vazia mantendo relações sexuais. Fato similar ocorreu em outra escola com duas meninas surpreendidas em um ato sexual em um dos banheiros da escola. Um outro fato relatado pel@s professor@s dizia respeito a “proibição” por parte d@s alun@s de uso dos banheiros masculinos e femininos por parte de sujeitos homossexuais assumidos. Estes tiveram de passar a usar o banheiro d@s professor@s até que se encontrasse uma solução, fato que até o momento do relato não havia ocorrido. Foi relatado ainda, outro “evento problemático” ocorrido em uma das salas de aula, reiteradas conversas por um telefone que nunca tocava de um aluno com seu “suposto” namorado durante as aulas que geravam distúrbios, provocações, xingamentos e o rótulo de “aluno problema”.
Sempre após estes relatos, havia o questionamento por parte d@s professor@s sobre a partir de que momento tais alun@s estariam pront@s para manter relações sexuais? Proibir expressões de carinho e de afetividade entre alun@s? E, como lidar com a homossexualidade e a travestilidade na escola? Como corrigir estes “problemas”? Como agir diante de casos tais como estes? Relatar aos pais? Expulsar? Obrigar o uso de roupas, maquiagens e acessórios condizentes com seu “sexo biológico”? Proibir o uso de elementos não condizentes com seu corpo? Todas estas questões são válidas e demonstram o cenário atual no qual a “sexualização dos corpos” vem avançando para idades cada vez mais jovens, momento no qual a expressão de uma identidade sexual ou performance de gênero não condizente com a heterossexualidade adentrou o espaço da escola.
Muitas vezes perplex@s, @s professor@s se deparam com estes eventos e apesar de perceberem a necessidade de adotar uma maior abertura para o tratamento das questões relativas à sexualidade e ao gênero na escola as transformam em “situações-problemas”, estigmatizando alun@s, identidades e, com isso, reproduzindo um discurso hierárquico que pode dar origem a preconceitos, discriminações e violências (simbólicas ou concretas) no espaço escolar e fora dele. É claro que a escola e @s professor@s não são seres etéreos que pairam acima da sociedade, pelo contrário, são pessoas e instituições que inseridas na sociedade e na cultura acabam por reproduzir os discursos socialmente hegemônicos.
Nesse sentido, é extremamente necessário que as questões de gênero e sexualidades sejam discutidas e apresentadas no espaço escolar, mas para isso é necessário uma formação prévia d@s profissionais da educação, fato que tal como constatado em diversas conversas informais estabelecidas durante a realização das atividades de pesquisa e extensão supracitadas não ocorreram.
Mais, que isso, tal como apontam Lopes e Oliveira (2014), no que tange a formação d@s profissionais de pedagogia verificou-se por meio da análise das grades curriculares das graduações dos cursos de Pedagogia existentes na cidade de Cuiabá (UNIVAG, UNIC, UNIRONDON, ICEE e UFMT), excetuando-se a UFMT que possuía a disciplina optativa “Educação e Sexualidade” que não é ministrada desde 2004, nenhuma das outras instituições possuía uma disciplina específica voltada para a discussão de gênero e sexualidade. E, ainda, por meio de entrevistas pessoalmente ou por telefone @s coordenador@s destes cursos relataram a efetiva inexistência de disciplinas atinentes às temáticas de gênero e sexualidades que, quando muito, tornam-se assuntos tratados superficialmente por disciplinas relacionadas, como por exemplo a disciplina de “Psicologia e Educação”. Tal fenômeno já havia sido constatado anteriormente em pesquisa desenvolvida por Carvalho (1996) que 16 anos antes relatou o simultâneo despreparo e interesse d@s professor@s pelas temáticas.
Para além da escassa preparação dos profissionais da educação para lidarem com as temáticas do gênero e das sexualidades, outra questão importante verificada durante a realização destes projetos foi a constante referência a discursos, imagens e representações respaldadas em uma perspectiva biologizante acerca do gênero e das sexualidades com a função de apresentar a discussão de maneira “objetiva”, “naturalizada” e “distanciada” na tentativa de resguardar @ profissional da educação frente a comunidade escolar e suas ansiedades. Nesse sentido, de acordo com Louro (1998, 41),
“[...] a sexualidade que é geralmente apresentada na escola está em estreita articulação com a família e a reprodução. O casamento constitui a moldura social adequada para seu ‘pleno exercício’ e os filhos, a consequência ou a benção desse ato. Dentro desse quadro, as práticas sexuais não reprodutivas ou não são consideradas, deixando de ser observadas, ou são cercadas de receios e medos. A associação da sexualidade ao prazer e ao desejo é deslocada em favor da prevenção dos perigos e das doenças. Nesse contexto que centraliza a reprodução, os/as homossexuais ficam fora da discussão [...] A homossexualidade é virtualmente negada, mas é, ao mesmo tempo, profundamente vigiada.”
Além disso, tal perspectiva “naturalizante” do gênero e das sexualidades está calcada na visão de uma heterossexualidade compulsória (Rich, 2010) que se constitui em uma exigência (cultural e social) de que todos os sujeitos sejam heterossexuais sendo que qualquer outra forma de vivência da sexualidade é tomada como desvio, anormalidade ou pecado. Institui-se, desse modo, a heterossexualidade como padrão, norma, princípio universal que não deve ser questionado quanto as causas enquanto as demais sexualidades podem e devem ser questionadas quanto a seu fundamento e origem. É o que se constata em diversas falas de profissionais da educação que constroem, muitas vezes sem se dar conta, as manifestações das sexualidades não-heterossexuais como “situações-problemas” que devem ser “corrigidas”, “punidas” ou “invisibilizadas”, por não terem lugar no espaço escolar.
4. Algumas considerações finais
“Foi, sem dúvida, Carmen da Silva quem melhor sintetizou a história da Educação Sexual no país: ‘pela enésima vez o Brasil redescobre a educação sexual’ (Revista Cláudia, outubro de 1978). E assim foi, e assim está sendo, pois afora algumas experiências piloto, perfeitamente circunscritas no tempo e no espaço, os educadores brasileiros ainda não ultrapassaram o debate se a escola deve ou não incluir a educação sexual em seu currículo. E mais: debates e experiências têm se circunscrito quase que exclusivamente à escola de 1º e 2º graus, deixando de considerar carências e demandas universitárias. É claro que a discussão através dos anos foi envolta por um discurso mais ou menos sofisticado, mais ou menos “progressista”, usando argumentos variados, de acordo com o momento político” (Rosemberg, 1985: 12).
Novamente o Brasil vem redescobrindo, e agora proibindo, o tema da educação sexual, trata-se de um processo de redescoberta que nunca foi “efetivado totalmente” e que atingiu sua expressão máxima nos PCNs de 1998 sendo alçado a categoria de “questão transversal” que deve impregnar toda a área educativa desde o ensino fundamental. No entanto, apesar da transversalidade da temática trata-se de uma questão que vem sendo relegada de uma maneira geral as disciplinas de biologia, ciências e educação física com o foco nas questões do funcionamento do corpo, na prevenção da gravidez e das doenças sexualmente transmissíveis o que relega a temática a uma abordagem médica,
“[...] pautada na díade saúde-doença (com ênfase na ação terapêutica para tratamento de ‘desajustes sexuais’, ansiedades ou angústias relativas à sexualidade); valoriza o fornecimento de informações em contexto de relação terapêutica ou de programas preventivos de saúde pública, para assegurar a saúde sexual do indivíduo e da coletividade” (Figueiró, 1996: 52).
Ou ainda, em uma abordagem pedagógica, “[...] o processo ensino/aprendizagem é a característica fundamental. É dada ênfase ao aspecto informativo, no qual pode-se incluir também o aspecto formativo (discussão de valores, atitude e sentimentos)”. (idem) Ambas abordagens vistas como meio de “levar o indivíduo a viver bem sua sexualidade”, mas desconsidera-se a abordagem política que
“[...] embora considere a relevância da vivência pessoal (saudável) da sua sexualidade, sua característica essencial consiste em perceber na Educação Sexual um compromisso com a transformação social, conduzindo as discussões para as questões que envolvem relações de poder, aceitação das diferenças e respeito pelas minorias. Há também uma preocupação em resgatar o erotismo (o prazer e a visão positiva da sexualidade) e as questões de gênero, em que os papéis sexuais são pensados à luz de um enfoque social, histórico e cultural”. (ibidem)
Nesse aspecto, a abordagem política da educação sexual, tão pouco difundida e aplicada na prática docente (e, mais recentemente repudiada e perseguida por uma abordagem conteudista e pelo movimento “escola sem partido” e da “ideologia de gênero), tal como definida acima por Mary Neide Damico Figueiró, se aproxima sobremaneira do documento da UNESCO lançado em junho de 2010 intitulado “Orientação Técnica Internacional sobre Educação em Sexualidade” que ao utilizar o conceito de Educação em Sexualidade, tem como objetivo trabalhar a saúde sexual e reprodutiva em termos mais abrangentes, com o fim de propiciar um aprendizado não só baseado na aquisição de conteúdos, mas também, incluir o questionamento de atitudes e habilidades para redução dos riscos de infecção à HIV e outras DSTs, bem como uso de álcool, drogas e situações de violência. Além disso, parte dos seguintes princípios:
“- A sexualidade é um aspecto fundamental da vida humana, tem dimensões físicas, psicológicas, espirituais, sociais, econômicas, políticas e culturais.
- A sexualidade não pode ser compreendida sem referência ao gênero.
- Diversidade é uma característica fundamental da sexualidade.
- As regras que governam a conduta sexual divergem amplamente em torno de e dentro de culturas. Certos comportamentos são vistos como aceitáveis e desejáveis, enquanto outros são considerados inaceitáveis. Isto não significa que estes comportamentos não aconteçam, ou que devem ser excluídos de discussão dentro do contexto da educação da sexualidade.”
Apesar deste artigo ser resultado de atividades de pesquisa e extensão desenvolvidas há alguns anos sobre a situação da educação em sexualidade podemos perceber que ainda há muito a ser debatido e construído no que refere a esse campo, seja com a inserção de disciplinas com essa temática na formação básica e permanente de profissionais de educação, seja no debate sobre as maneiras nas quais as representações sociais acerca das sexualidades dest@s profissionais influenciam nas discussões e na implantação da temática da orientação sexual como temas transversais na escola, ou ainda, na maneira como @s alun@s trazem, vivenciam e “sofrem” discriminações, preconceitos e violências no que tange as expressões de gênero e das sexualidades no cotidiano da escola. Trazer estas questões para discussão no espaço escolar é algo urgente, necessário e que não deve ser tratado como um “problema” apenas para determinadas áreas de saber, mas para toda a comunidade escolar.
5. Referências do Autor
Moisés Lopes é graduado e mestre em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Londrina (UEL), Doutor pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade de Brasília (UnB) e Pós-Doutor pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Professor do Departamento de Antropologia e do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal de Mato Grosso. Atualmente coordenador do curso de graduação em Ciências Sociais modalidade Bacharelado, Vice-Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal de Mato Grosso e Primeiro Secretario Executivo da Associação Brasileira de Estudos de Homocultura (ABEH). Tratava-se de um artigo desenvolvido em parte com dados do projeto de pesquisa intitulado “As imagens e representações sociais acerca do gênero e das sexualidades entre docentes do Ensino Médio de Cuiabá – MT” que foi desenvolvido com financiamento do CNPq via CHAMADA UNIVERSAL – MCTI/CNPq Nº 14/2013.
6. Referências Bibliográficas
BUTLER, Judith. “Fundamentos contingentes: o feminismo e a questão do pós-modernismo”. Cadernos Pagu, (11), 1998:11-42.
CARVALHO, Sumaya Persona de. Sexualidade, educação e cultura: instantâneos de escolas de Cuiabá e Várzea Grande. Dissertação de mestrado em Educação. Universidade Federal de Mato Grosso, Cuiabá, 1996.
FIGUEIRÓ, Mary Neide Damico. “A produção teórica no Brasil sobre Educação Sexual”, Cadernos de Pesquisas, São Paulo, (98), 1996: 50-63.
HARAWAY, Donna, “Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial”, Cadernos Pagu, (5), 1995:07-42.
HARDING, Sandra. Ciencia y feminismo. Madrid: Ediciones Morata, S.L., 1996.
LOPES, Moisés. Debates, diálogos e confrontos: Representações sociais das homossexualidades nas discussões sobre a Parceria Civil Registrada. Dissertação de Mestrado em Ciências Sociais. Universidade Estadual de Londrina. Londrina, Brasil, 2005.
__________. “Debates, Diálogos e Confrontos: Representações sociais das homossexualidades nas falas dos deputados nas discussões acerca do projeto de Parceria Civil Registrada”. Revista Ártemis, Paraíba, v. 4, 2006.
LOPES, Moisés; JEOLAS, Leila Sollberger. “Do permanente e da mudança: representações sociais das homossexualidades no debate da Parceria Civil Registrada”. Revista de Psicologia da UNESP, v. 7, 2008.
LOPES, Moisés; OLIVEIRA, Josiane M. F. S.. “A invisibilidade da temática da sexualidade na formação de pedagog@s e licenciad@s: Algumas considerações”. Anais do III Simpósio de Gênero e Políticas Públicas. Londrina, 2014.
LOURO, Guacira Lopes “Segredos e mentiras do currículo.Sexualidade e gênero nas práticas escolares”. In: SILVA, L. H. A escola cidadã no contexto da globalização. Petrópolis: Vozes, 1998, p. 33-47.
RICH, Adrienne.“Heterossexualidade compulsória e existência lésbica”. Bagoas, n. 05, 2010, p. 17-44. Disponível em: http://www.cchla.ufrn.br/bagoas/v04n05art01_rich.pdf
ROSEMBERG, Fúlvia. “Educação sexual na escola”. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, (53), 1985: 11-19.
UNESCO. Orientação técnica internacional sobre educação em sexualidade: uma abordagem baseada em evidências para escolas, professores e educadores em saúde. v.1. Razões a favor da educação em sexualidade. UNESCO, 2010. Consultado em 20 de julho de 2013, http://unesdoc.unesco.org/images/0018/001832/183281por.pdf
Olá, primeiramente parabenizo pelo texto. Meu questionamento: É inegável que estamos vivendo um momento de desconstrução e negação de fatos históricos, que tem ganhado tal força e repercussão a partir de uma distorção da realidade. Diante disso, pergunto de que forma, nesse cenário tão "ameaçador", nós, professores da educação básica, podemos continuar a discutir sobre gênero e sexualidade em sala de aula?
ResponderExcluirAtenciosamente, Alexandra Sablina do Nascimento Veras
Olá Alexandra Veras, em primeiro lugar obrigado. Em segundo, gostaria de dizer que concordo contigo acerca de sua análise sobre o momento crítico e complexo em que vivemos para os campos da educação e do conhecimento científico. Mas, não podemos desanimar se queremos a construção de um país e um mundo melhor, sem preconceitos, discriminação em relação à diferença. Para isso, temos de desenvolver estratégias para trazer o tema a baila nesse campo, a UNESCO, por exemplo tem construído uma série de materiais sobre a educação em gênero e sexualidade, dê uma olhada na página http://www.unesco.org/new/pt/brasilia/social-and-human-sciences/human-rights/gender-equality/ e na página https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000183281_por. Só para citar alguns materiais. Fortaleça seu conhecimento sobre o tema e busque formações e discussões sobre a temática. Espero ter ajudado...
ExcluirSabe-se que os PCN's trabalha as questões de gênero desde o ano de 1998.Mas com a aprovação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) ,como fica essas questões?
ResponderExcluirViviane de Jesus Souza
Prezada Viviane Souza, apesar da BNCC ter sido homologada com a retirada dos termos "gênero e sexualidade", a ideia de diversidade continua presente em seu texto nas habilidades e competências. Além disso, a BNCC e o PNE estão atravessados por noções de múltiplo, de alteridade, de diferença e de respeito, estas questões estão presentes em várias disciplinas. Somando-se a isso, "a discussão de gênero vale para a educação como um todo e é prevista em tratados internacionais de direitos humanos que o Brasil é signatário, como a Convenção Relativa à Luta contra a Discriminação no Campo do Ensino (1960), a Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial (1968), a Convenção para Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (1979), entre outras. As discussões também podem ser sustentadas pela Constituição Brasileira (1988), pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação (1996) e pela Lei Maria da Penha (2006). Por isso, todas as tentativas de limitar esses debates são inconstitucionais, porque violam os princípios de igualdade de condições de acesso e permanência na escola, da não-discriminação e da liberdade de aprender e ensinar." Como aponta Júlia Daher nesse fragmento da matéria publicada nessa página [http://www.deolhonosplanos.org.br/bncc-aprovada-genero-orientacao-sexual/] Espero ter respondido.
ExcluirSe os temas transversais fosse trabalhado mais profundamente em sala de aula ,haveriam tantos episódios de discriminação, preconceito e violência?
ResponderExcluirViviane de Jesus Souza
Olá Viviane Souza, há algumas pesquisas realizadas nos EUA em vários estados e durante muitos anos que apontam que nas escolas em que os temas de gênero e sexualidade são mais largamente debatidos os episódios de bullying LGBTfóbico diminuem drasticamente. Além disso, estas pesquisas também apontam que não só as pessoas que são alvo do bullying sofrem impactos na formação de sua identidade, mas também as crianças e adolescentes que promovem o bullying. Dê uma olhada por exemplo no texto deste link [https://drive.google.com/file/d/0B_ZY8QTaBH7pekVZcU8xdGN4djA/view]
ExcluirLevando em consideração a necessidade de se abordar a temática Orientação Sexual nas escolas, seria uma possível possibilidade a formação de uma equipe de estudantes com-postos pelas áreas de Direito, Medicina, Psicologia, Terapia Ocupacional e outras, para que pudessem ministrar palestras nas escolas, conscientizando, explicando sobre as leis, ouvindo relatos, atingindo assim, tanto o espectro dos docentes quanto dos discentes? Dessarte gostaria de parabenizar pela construção do texto!
ResponderExcluirMaria Gabriella Nunes Souza
Olá Maria Gabriella Souza, obrigado! Acho que esta estratégia sugerida por você é muito interessante sim para levar estas discussões das universidades para as escolas. Mas, não podemos também deixar de provocar a inserção destas discussões como temas obrigatórios na formação de futuros(as) profissionais (professores(as) ou não) nos currículos de graduação e, também como temas de cursos de formação para os(as) docentes que já estão atuando no ensino.
ExcluirPrimeiramente parabéns pelo excelente texto, e a minha pergunta leva em consideração a preparação (ou falta dela) do profissional da educação para lidarem com as temáticas do gênero e das sexualidades, pois quando existe esta preparação, ela só fica na superfície de uma perspectiva biologizante e atrelada a reprodução. Nesse sentido, você considera necessário um redimensionamento no preparação dos profissionais da educação para tratarem das questões relativas à sexualidade e ao gênero a partir de uma perspectiva que rompem com os discursos socialmente hegemônicos?
ResponderExcluirSuellen Cerqueira da Anunciação de Souza
Olá Suellen Souza, obrigado! Concordo contigo sobre a necessidade de formação de profissionais da educação (mas não apenas dessa área) a partir de uma perspectiva não-biologizante e mais atrelada a uma discussão de gênero e sexualidade que leve em consideração noções como o respeito a diversidade, ao múltiplo, a alteridade, a diferença e a não-discriminação. Perspectiva já prevista em tratados internacionais de direitos humanos que o Brasil é signatário, mas que ainda não adentraram no espaço escolar e universitário muitas das vezes.
ExcluirÉ extremamente necessário que as questões de gênero e sexualidades sejam discutidas e apresentadas no espaço escolar, no entanto, como o professor deve explanar sobre o assunto em sala de aula, pois além da proposta da escola sem partido, que está distorcendo o assunto de gênero e sexualidade, tem alguns pais de alunos que estão com esse pensamento que o professor não deve levantar "ideologia de gênero" na escola, subvertendo uma educação que é conscientizadora?
ResponderExcluirDanilo Jobson Dantas Freire
Olá Danilo Freire, em primeiro lugar "ideologia de gênero" não existe, o que existe é um movimento de alguns grupos que rejeitam a discussão dos temas da educação do gênero e das sexualidades nas escolas, leia melhor sobre isso aqui [https://www.politize.com.br/ideologia-de-genero-questao-de-genero/]. Em segundo lugar, em agosto do ano passado o STF definiu por meio de uma julgamento que "A supressão de um domínio do saber do universo escolar desrespeita o direito à educação “com o alcance pleno e emancipatório que lhe confere a Constituição”. Esse foi o entendimento do ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal, ao conceder liminar com efeito suspensivo de parte de uma lei municipal de Palmas (TO) que proibia o ensino sobre gênero e sexualidade na rede pública da cidade." Leia mais sobre isso aqui [http://stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=388055] e aqui [https://www.conjur.com.br/2018-ago-30/barroso-suspende-norma-proibia-ensino-genero-palmas]
ExcluirPode explicar melhor este trecho por favor?
ResponderExcluir"Foi relatado ainda, outro “evento problemático” ocorrido em uma das salas de aula, reiteradas conversas por um telefone que nunca tocava de um aluno com seu “suposto” namorado durante as aulas que geravam distúrbios, provocações, xingamentos e o rótulo de “aluno problema”."
Não consegui compreender bem.
Milena Vasconcelos da Silva Costa
Olá Milena Costa, neste fragmento de texto descrevo um de alguns eventos que me foram relatados por docentes. Neste, em especial, o docente relatou que durante suas aulas (e de outros professores) reiteradamente um aluno fingia atender uma chamada de telefone de seu namorado. Apesar de o telefone nunca tocar. E que essa "performance" gerava distúrbios, provocações, xingamentos de outros(as) estudantes na escola, além do rótulo de "aluno problema" por parte do corpo docente desta mesma escola.
ExcluirSabemos deste despreparo d@s professores em geral sobre os assuntos de gênero e sexualidade, porém, quando pensamos na resolução deste problema há uma escassez de possibilidades. Acredito que além da conscientização d@s profissionais de ensino se faz necessária a reunião de material para o trabalho com estas temáticas, mas, na minha concepção, mais importante que a elaboração de novos materiais voltados especificamente ao público escolar o ponto chave esta na ressignificação de conteúdos já existentes, principalmente da cultura popular. O que acha desta metodologia?
ResponderExcluirMilena Vasconcelos da Silva Costa
Olá Milena, concordo contigo em ambos os aspectos. Temos de fortalecer a formação inicial e continuada dos profissionais da educação com a inserção obrigatória destes temas a partir de uma visão não-biologizante. Mas, também acredito na necessidade da elaboração e da reunião de novos materiais que possam ser adequados a realidades distintas e em contextos diferentes.
ExcluirMaravilhoso o seu texto, me fez recordar da minha época de escola quando surgia alguns poucos eventos sobre sexualidade. Um ponto que super me chamou atenção foi quando você disse "A associação da sexualidade ao prazer e ao desejo é deslocada em favor da prevenção dos perigos e das doenças". A minha pergunta é: você acha que uma disciplina voltada para esse assunto diminuiria os casos de DST's em relação ao grupo LGBT? Já que mesmo fora da escola são poucos os movimentos de conscientização e prevenção em especial as lésbicas.
ResponderExcluirSofia Adelaine Gonçalves da Rocha.
Olá Sofia Rocha, acredito que quando passamos a conhecer nossos corpos e aprendemos a cuidar deles, valorizando nosso bem-estar em todos os aspectos (físico, psicológico e emocional) para além de uma educação repressora e baseada no medo, passamos a ter um autocuidado maior em todos os aspectos. Acredito que a criação de uma disciplina específica, cursos livres, cursos de formação, grupos de debate, movimentos de conscientização ou a inserção deste conteúdo em disciplinas podem ser estratégias para que a prevenção as ISTs (Infecções Sexualmente Transmissíveis) se efetivem. Mas não podemos deixar de cobrar o papel do Estado e do Governo nesse processo, pois esta é também uma das funções do SUS (Sistema Único de Saúde).
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