Heloísa Raquel da Silva e Christian Fausto Moraes dos Santos


GÊNERO ESTIGMATIZADO: CONTROLE SOCIAL E MARGINALIZAÇÃO DAS PROSTITUTAS NO SÉC. XIX



Introdução

Desde o surgimento da sífilis (Treponema pallidum) e apesar de todas as teorias formuladas sobre suas formas de contágio, a responsabilidade acerca de sua propagação sempre recaiu sobre as mulheres, em especial as trabalhadoras do sexo. A medicina, a partir do século XIX, enquanto agente normatizador e fiscalizador dos corpos, agiu de forma categórica. Através de processos de higienização, estabeleceu duras regulamentações que se consolidavam na forma de leis, regulamentos ou manuais.

Construção do Gênero “inferior” através da medicina

Até o século XVII, a visão sobre o corpo e a sexualidade era resultado da conciliação dos preceitos de ordem social, o respeito pela religião e o crescimento demográfico. A cultura do período era categórica em tachar os indivíduos e principalmente seu comportamento como “lícito” ou “ilícito”, a partir de critérios que variavam de acordo com a classe social, idade, normas médicas e, principalmente, o sexo. O corpo é o agente dos atos sexuais proibidos, ele protagoniza as dificuldades das imposições culturais e legislativas. Havia uma grande complexidade entre o que era imposto e as experiências cotidianas, relacionadas a sexualidade (Matthews-Grieco In Vigarello, 2008: 219).
A partir do século XVIII, uma crescente sociedade burguesa, munida de um grande senso de pudor, faz do corpo e da sexualidade assuntos evitados e até mesmo proibidos (id. ibid.). A ascensão dessa burguesia vem acompanhada de uma nova ferramenta de poder baseada na disciplina. Esse poder disciplinar se caracteriza por uma intervenção positiva, que gera transformação social. O projeto normativo burguês se baseia na norma como um critério de qualificação e de correção ao mesmo tempo (Miskolci, 2002/2003: 110).
Simultaneamente, através do fenômeno da medicalização dos hospitais, a medicina passa a exercer um papel fundamental no controle e administração dos corpos, interferindo no cotidiano. É ela quem vai definir as regras que vão orientar a vida moderna, não apenas no que diz respeito a doenças, mas também em vários aspectos da vida dos indivíduos, como a sexualidade, a fertilidade e outros. (Foucault, 1996).  Sob a influência de estudos como o de Isaac Newton, o estudo médico baseia-se, cada vez mais, na observação e experimentação ao longo do século XVIII. Diante da possibilidade de aprimorar a espécie humana, os valores higiênicos e valorização da força física eram primordiais (Nunes, 2011: 138).
De um lado há a imposição da figura do médico como um ser socialmente superior, ele adquire poder cultural e moral. E de outro, todo o imaginário que convence a mulher da necessidade de ir ao médico com frequência. (Vieira, 2002). É no final do século XVIII e início do XIX que a apropriação da medicina sobre o corpo feminino se legitima.
O papel da mulher era decisivo para a supremacia burguesa. Seguindo as normas sociais, a medicina determinava que uma mulher saudável era a que vivia em matrimonio, tendo relações sexuais com finalidade reprodutiva. Sua subjugação garantiria a dominação patriarcal e, consequentemente, a unificação familiar, o que seria legitimado pela negação da sexualidade feminina (Silva, 2007: 794). Em sua discussão sobre saber, poder e sexo, Michel Foucault descreve uma histerização do corpo da mulher como um dos dispositivos estratégicos de controle, processo pelo qual seu corpo foi analisado e tido como portador de uma sexualidade inata e incontrolável e, por isso, essencialmente doente. (Foucault, 1988).
A falta de poder quando se trata de sexualidade, coloca as mulheres em posição de submissão aos pais, maridos e médicos, ao corpo da mulher associa-se uma missão passiva e materna (Rohden, 2001). A prostituta, ao subverter esta ordem e, de certo modo, retomar o controle de sua sexualidade, é vista como doente. Uma das funções dos médicos era evidenciar as consequências terríveis da prostituição. Consequências que afetariam a sociedade em geral, uma vez que esta prática desestimulava o trabalho e estimulava o vício e outros problemas morais. (Nossa, 2010).
Sífilis como agente enfraquecedor
A sífilis aparece como doença que causa o enfraquecimento da força de trabalho. E é enquanto fonte e agente da propagação da sífilis que recai a ênfase maior do discurso sobre a prostituta (Engel, 1989: 75). Neste contexto, alegando a necessidade de impedir escândalos e a degeneração da família e da moral, as prostitutas eram obrigadas a viverem em áreas específicas. Junto a isso, havia no meio acadêmico do período, a visão da prostituição como ameaça à saúde física.
Na tentativa de promover um crescimento populacional, visando aumentar seu poder militar e econômico, os soberanos absolutos se interessam pela saúde de seu povo (Faure In Corbin, 2008: 19). De agora em diante, o vocabulário e a forma de pensar médicos passavam a ser utilizados como forma de poder. O discurso médico se impunha de forma tão dominante e inquestionável, não apenas pelos esforços da medicina e do Estado em regular a população, mas pela própria sociedade, que estava obcecada, encantada e inquieta com o corpo e suas implicações (ibidem). O caráter histórico das normas sexuais nos mostra como as ideias de sexualidade são fruto de uma construção social, evidenciando os pressupostos ideológicos que não se manifestavam claramente à afirmação do caráter pleno das mesmas (Almeida, 1995).
É através da medicina que o Estado passa a reger o comportamento adequado e aceito socialmente, a figura do médico ganha autoridade. Em meados do século XIX, os médicos eram descritos como os primeiros disseminadores do projeto de normalização do espaço social urbano (Engel, 1989: 39). A relação entre o visível e o invisível se altera. É o início da racionalidade cientifica que se impõe através da higiene pública, controle de nascimentos e demografia. A preocupação com a questão demográfica e a busca por um controle populacional são fatores estritamente ligados à medicalização do corpo feminino (Vieira, 2002).
A prostituição se configura então, como uma fatalidade e como uma válvula de escape. Fatalidade, porque é um mal necessário, que não deve ser eliminado, mas controlado. Válvula de escape, porque atende as exigências dos instintos masculinos e é, portanto, um escudo de proteção aos valores e padrões de comportamentos (Engel, 1989: 110).  
Alguns aspectos históricos da sífilis 
Simultâneo ao regresso de Colombo de sua primeira viagem ao Novo Mundo surge, em Barcelona, uma nova e aterradora epidemia. Ela transpassa as classes sociais, atingindo tanto pobres quanto nobres e até mesmo autoridades religiosas. Expande-se rapidamente e muitas pessoas padecem e morrem. Toma grande proporção entre os homens do exército francês que sitiava Nápoles, em 1494. A disseminação foi tão grave que os soldados são dispensados. Consequentemente, espalham a doença pelos países que passam e ela fica conhecida como “mal francês” (Papavero, Llorente-Bousquets, Espinosa-Organista, 1995: 57).
Em meados do século XVI são feitas as primeiras associações entre o retorno de Colombo das ‘Indias’ e esta doença. Sua origem passa a ser atribuída aos nativos americanos. Outros acreditavam que a doença já existia na Europa antes do descobrimento do novo continente. Foi Gerolamo Fracastoro que ao estudar a origem da doença, batizou-a de syphilis, por causa de um mito sobre o primeiro homem que foi acometido dela, Sífilo. (Ibidem: 60).
Nesse período, a sífilis era descrita como uma “sarna” que tomava o rosto e o corpo, causando verrugas que eclodiam com cheiro fétido e acompanhadas de dores terríveis. Alguns dos soldados pareciam bem, marcados apenas com pequenas lesões no corpo e na língua, eram esses que frequentavam os banhos públicos, iam aos cirurgiões-barbeiros para fazer sangrias e se relacionavam com as prostitutas, disseminando a doença (Souza, 1996: 184).
Em Portugal há a ocorrência dos primeiros casos logo após o retorno de Colombo do Novo Mundo. No Hospital Real de Todos os Santos é criada a “casa das boubas” para tratamento dos doentes afetados pelo novo mal. “Boubas” era o nome utilizado para designar uma grande variedade de lesões sifilíticas, tais como feridas, abscessos, úlceras e verrugas (Veloso, 2001). Na Europa, Portugal foi o país que mais tratou os doentes acometidos pela sífilis.
Se o excesso sexual originava a doença e o sexo fora do casamento era pecado, a sífilis seria então um castigo divino (Souza, 1996). Apesar de todas as medidas contra as prostitutas e o fechamento dos bordeis, a sífilis continuava se propagando, então, conclui-se que os banhos públicos também eram fonte de contaminação. Consequentemente, eles se tornaram cada vez mais vazios, até serem extintos. E as pessoas passaram a utilizar perfumes visando evitar o contágio através dos ares e dos lugares. Fontes enciclopédicas do início do século XIX indicam que o contato com água era difícil e o banho era sempre associado a fins médicos (Vigarello in Corbin, 2008: 376).
Propomos, portanto, a leitura, transcrição e análise da fonte documental manuscrita inédita Methodo de atalhar a propagação da Syphilis nas casas publicas de prostituição, de autor desconhecido, escrita em Portugal, no ano de 1839. Bem como o estudo sistemático das regras e métodos propostos para conter a sífilis nas casas de meretrício e sua significação de acordo com a conjuntura médico/social do período. Objetivamos não somente contribuir com a investigação no campo da História da Medicina na era moderna, mas, também, fornecer um ensaio preliminar sobre o modo como as prostitutas eram vistas e, consequentemente, submetidas a diversos tipos de regulamentações em Portugal no século XIX.
Conclusão
Em meados do século XVII, por causa da perda gradual da virulência da sífilis e a diminuição dos sintomas, o pânico que a doença causava foi diminuindo, os homens habituaram-se a conviver com a doença e oscilavam entre despreocupação e medo. A necessidade de esconder as feridas e as úlceras do pescoço, mãos e rosto, fez nascer a moda das cabeleiras postiças, luvas e camadas de pó. (Souza, 1996).
As formas de prevenção foram negligenciadas, mesmo porque o paradigma sanitário vigente não privilegiava o modelo preventivo. Consequentemente, a taxa de portadores da doença aumentou; o resultado foi uma grave epidemia no século XVIII. Coube à medicina alertar a gravidade da doença que, no século XIX, também dissemina o pânico, bem como as medidas repressivas contra as prostitutas. A crença de que a sífilis era transmitida por elas era sempre a mais aceita e difundida, independente das outras teorias sobre o contágio. A prostituição foi perseguida e ilegalizada, e as prostitutas sifilíticas eram enclausuradas, enquanto durasse o tratamento, em enfermarias isoladas e sem condições higiênicas ou humanitárias.
A sífilis foi uma doença pandêmica que acometeu toda a Europa, possuía índices de mortalidade altíssimos. Por conta disso, a medicina se dedicava intensamente a buscar as classes responsáveis por sua disseminação e a estabelecer normas e regras que pudessem contê-la. Justificamos a pesquisa aqui apresentada, sob a necessidade de esquadrinhar como se deu este importante processo.
Referências
Graduanda do curso de História na Universidade Estadual de Maringá, bolsista PIBIC com financiamento CNPq
ALMEIDA, M. V. Senhores de Si: Uma Interpretação Antropológica da Masculinidade. Lisboa: Fim de Século, 1995.
CORBIN, Alain. Historia do Corpo: Da Revolução à Grande Guerra – Vol. II. Petrópolis: Editora Vozes, 2008.
ENGEL, Magali. Meretrizes e Doutores: saber médico e prostituição no Rio de Janeiro (1840-1890). 1ª edição, São Paulo: Editora Brasiliense, São Paulo, 1989.
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: A vontade de saber. 13ª edição. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1988.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. 12ª edição. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1996.
MISKOLCI, Richard. Reflexões Sobre Normalidade e Desvio Social. Estudos de Sociologia, Araraquara, Vol. 13, N.14, 109-126, 2002/2003.
NOSSA, Paulo. O discurso biomédico da defesa da saúde e a prática da prostituição: do movimento higienista à era pós-sida. In SILVA, Manual C.; RIBEIRO, Fernando B. Mulheres da Vida, Mulheres com Vida: Prostituição, Estado e Políticas. Porto: Ed. Húmus, 2010.
NUNES, Rossana. Nas Sombras da Libertinagem: Francisco de Mello Franco (1757-1822) entre luzes e censura no mundo luso-brasileiro. 2011. 160f. Dissertação de Mestrado – Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2011.
PAPAVERO, Nelson; LLORENTE-BOUSQUETS, Jorge; ESPINOSA-ORGANISTA, David. Historia de la biologia comparada: Volumen III. De Nicolás de Cusa a Francis Bacon.México: Universidad Nacional Autónoma de México, 1995.
ROHDEN, Fabíola. Uma ciência da diferença: sexo e gênero na medicina da mulher.Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2001.
SCHETTINI, Cristiana. “Que tenhas teu corpo”: uma história social da prostituição no Rio de Janeiro das primeiras décadas republicanas. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2006.
SILVA, Susana. Classificar e silenciar: vigilância e controlo institucionais sobre a prostituição feminina em Portugal. Análise Social, Portugal, vol. XLII (184), 789-810, 2007.
SOUZA, J. Germano de.  Impacte social da sífilis: alguns aspectos históricos. Medicina Interna, Portugal, Vol. 3, N. 3, 184-192, julho/setembro 1996.
VELOSO, Barros. Da sífilis à sida. Medicina Interna, Lisboa, Vol. 8, N. 1, 56-61, Janeiro/março 2001.
VIEIRA, Elisabeth Meloni. A medicalização do corpo feminino. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2002.
VIGARELLO, Georges. Historia do Corpo: Da Renascença às Luzes – Vol I. Petrópolis: Editora Vozes, 2008.



5 comentários:

  1. Boa noite,
    Parabenizo pelo texto e pela perspectiva de pesquisa que se apresenta.
    Pesquisei a prostituição no seculo XX enviesando os projetos de cunho civilizador que as excluíam enquanto participes da sociedade que tanto pautou a moral e bons costumes, consequentemente as colocando nas extremidades das cidades. Meus questionamento referente a sua pesquisa no seculo XIX é se foi possível verificar uma especie de "autoestigmatização" "autoexclusão" por parte das trabalhadoras do sexo?

    Atenciosamente
    Lailson Costa Duarte

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    1. Boa noite Lailson,
      Obrigada pela pergunta.
      A partir da leitura da fonte e análise das referências, o que posso concluir é que não havia uma “autoestigmatização” ou “autoexclusão”, visto que o estigma e exclusão partiam da sociedade, dotada de forte caráter em defesa da moral e dos bons costumes e do Estado, que buscava formas de segregar as prostitutas, através da gestão urbana.
      Espero ter respondido seu questionamento,
      Heloisa Raquel da Silva

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  2. Olá, Boa tarde


    Primeiramente parabenizo pelo trabalho, excelente reflexão sobre a questão da sífilis, Mas diante das suas pesquisar o que eu gostaria de te questionar é por que o sexualidade das mulheres sempre foi utilizado para construir a imagem de um ser incapaz de controlar seu impulsos e assumir outros espaços ao não ser o de matrimonial?


    Gizelle Ribeiro da Silva.

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  3. Boa noite!
    Gostaria de parabenizar os autores pela pesquisa desenvolvida e por mencionar uma classe tão subjugada até hoje pela nossa sociedade.
    Minha pergunta é em relação às famílias dos homens infectados com sífilis.
    Existem relatos históricos sobre as esposas infectadas e como elas eram vistas pela sociedade, por serem mulheres? (uma vez que elas seriam o exemplo ideal de feminilidade recatada, diferentemente das prostitutas).
    Elas sofriam abertamente de algum preconceito diferenciado mesmo não se dedicando ao meretrício?

    Analuz Marinho Gonçalves

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    1. Boa noite Analuz,
      Obrigada pela pergunta.
      Até o presente momento não tive contato com fontes que mencionassem as famílias dos homens infectados. Através da minha fonte de estudo, posso concluir que, para o autor, as grandes responsáveis pelo contágio da sífilis sempre foram as prostitutas e, muitas vezes, os homens acometidos pela doença são vistos como “vítimas” dessa “classe mais abjeta do gênero feminino”, que é como o autor se refere as meretrizes.
      Há também a visão da sífilis como uma doença que enfrequece a força física e que causa grandes prejuízos a sociedade como um todo, entretanto, sobre as esposas e as famílias, não tive contato.
      Atenciosamente,
      Heloisa Raquel da Silva

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