A DESIGUALDADE DE GÊNERO: A CONVENÇÃO DE BELÉM E A LEI MARIA DA PENHA
Muito é falado sobre as conquistas das mulheres, como se essas tivessem seus direitos plenamente reconhecidos e respeitados no contexto social, político e econômico hodierno. Contudo, é claro que a classe feminina obteve diversas mudanças em seus direitos e que muitos foram alcançados. No entanto, a mulher, desde o século XVIII até os dias atuais, ainda é rodeada por uma realidade opressiva e submissa em uma sociedade patriarcal e machista. Desse modo, este artigo possui como propósito contribuir para reflexões sobre a importância do atendimento em rede para atingir resultados mais satisfatórios da Lei Maria da Penha e visa analisar o Movimento Feminista realçando a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará), que possui um gigantesco significado para a luta pela igualdade de gênero, a qual serviu como base para a Lei n° 11.340 (Lei Maria da Penha).
Os movimentos sociais, no decorrer da história, se mostraram imprescindíveis para as mudanças nas relações sociais humanas, logo, são instrumentos capazes de alcançar conquistas para grupos desfavorecidos da sociedade. Desse modo, o movimento feminista surge, com influências iluministas, a fim de aumentar a autonomia feminina, que sempre teve seu papel ligado e subordinado aos homens e eram, e continuam sendo, alvos incessantes de violências psicológicas, físicas, sexuais e econômicas.
A Convenção de Belém, em seu primeiro artigo, expõe o que deve ser compreendido por violência contra a mulher, e muitas das hipóteses nele previstas são habitualmente desrespeitadas pela sociedade. A Lei Maria da Penha, oriunda dessa convenção, possui tal nome em homenagem à Maria da Penha Maia Fernandes, vítima de várias tentativas de assassinato pelo seu marido, sendo que uma delas a deixou paraplégica. Mesmo com esse acontecimento, ela ainda precisou lutar por vinte anos para que seu agressor fosse preso. Em setembro de 2006 a lei em fim entrou em vigor, fazendo com que a violência contra a mulher não fosse mais tratada como um crime de menor potencial ofensivo. Tal lei elaborou um mecanismo responsável pela coibição de agressões domésticas e familiares, nos termos da Convenção de Belém e do art. 226 da Constituição Federal. A lei ainda pois fim às penas pagas multas ou cestas básicas, além de abarcar também as violências psicológicas, patrimonial e o assédio moral, não só a física e sexual.
Destarte, a Lei Maria da Penha representa uma verdadeira vitória sobre a impunidade, por meio dela vidas foram preservadas e muitas mulheres em situações de violência ganharam o direito à proteção, fortalecendo, assim, a autonomia das mulheres. Ela reconhece a obrigação pertencente ao Estado em garantir a segurança das mulheres, sejam em espaços públicos ou privados, a fim de dotá-las de poder para que exerçam plenamente sua cidadania.
Entretanto, infelizmente, tal lei ainda é detentora de uma certa ineficácia, visto que ainda é exorbitante o número de mulheres que mesmo após a procura por ajuda policial e judicial e obterem medida protetiva, ainda são vítimas de violência, que muitas vezes resultam em suas mortes, principalmente por ex companheiros. A Lei da Maria da Penha, porém, não abrange todas as mulheres que sofrem outros tipos de violência de gênero, desta forma, não atende a todos os anseios do movimento feminista para garantir a tão sonhada igualdade de gênero. Pontos indispensáveis ambicionados pelo movimento, continuam sendo descartados pelo poder público, como a luta pela igualdade salarial e maior espaço no âmbito político. Ainda que o mundo esteja globalizado, o sexo feminino continua sendo alvo constante do machismo dos homens e das próprias mulheres. Muitos ainda possuem o pensamento que “lugar de mulher é apenas na vida doméstica, enquanto o papel masculino é o de levar o sustento para casa.
Os avanços do movimento feminista no ordenamento jurídico brasileiro
A Constituição de 1988 foi a primeira no Estado brasileiro a positivar diversos direitos que tangem a proteção do sexo feminino a favor do Movimento Feminista. Ainda assim, existem dificuldades em criar e manter políticas públicas eficientes que façam tais direitos serem concretizados. Como defende Marcela Cristina de Souza Alvim, a maior luta travada atualmente pelas mulheres é a efetivação de seus direitos salvaguardados pela Constituição.
Como já anteriormente falado, a Lei n° 11.340 foi um insuspeito marco na história legislativa brasileira, devido a sua busca por punir de modo mais célere e severo a violência ocorrida no âmbito familiar contra a mulher. Uma de suas inovações foi a detenção de seu caráter preventivo, e não só punitivo, que incluem a proibição de aproximação ou qualquer tentativa de contato com a vítima; a prestação de alimentos provisionais e a prestação de caução provisório, mediante depósito judicial, por danos ou perdas matérias decorrentes de práticas de violência doméstica e familiar.
Embora com todas as medidas tomadas para a erradicação da violência contra a mulher os números continuam alarmantes, e isso resultou na instauração, em 2012, de uma Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) para tratar sobre a tal violência. Uma de suas principais pautas foi a articulação para a elaboração de uma lei responsável por combater de modo mais eficaz a violência. A CPMI constatou a existência de dados assustadores de violências intrafamiliar no Brasil resultantes em óbitos, que sucedeu, após inúmeros debates e discussões, na Lei n° 3.104/2015, que tipificou o feminicídio – expressão utilizada pela primeira vez pela então presidenta Dilma Rousseff para tratar de mulheres mortas por homens somente pelo fato de pertencerem ao sexo feminino – como homicídio qualificado, colocando-o no rol de crimes hediondos.
Apesar disso, é necessário que seja destacado que somente medidas legais não solucionarão um problema tão enraizado em nossa sociedade e não serão suficientes para que sejam salvaguardados os direitos femininos contidos na Constituição e na legislação infraconstitucional. Além das leis e normas, são necessários investimentos, por parte do Executivo, em políticas públicas explicativas e educacionais que visem a proteção à mulher, algo que é extremamente pedido pelo Movimento Feminista.
A Lei Maria da Penha e a necessidade de formulação de novas normas para o fim da desigualdade
A elaboração da Lei Maria da Penha foi decorrente de uma ação coletiva ordenada por Organizações Não Governamental (ONG’s) feministas, baseando-se na existência de altas taxas de violência contra a mulher praticadas nas relações afetivas, além da quase que total impunidade dada aos agressores. Pela primeira vez, a Convenção de Belém estabeleceu o direito de toda mulher viver uma vida livre que qualquer violência, além de trata-la como uma violação aos Direitos Humanos Internacionais. Nesse sentido, passou a ser adotado um novo paradigma na concepção dos direitos humanos, considerando o privado público, tornando o Estado responsável por erradicar e sancionar as situações de violência contra as mulheres.
“A fim de proteger o direito de toda mulher a uma vida livre de violência, os Estados-Partes deverão incluir nos relatórios nacionais à Comissão Interamericana de Mulheres informações sobre as medidas adotadas para prevenir e erradicar a violência contra a mulher, para prestar assistência à mulher afetada pela violência, bem como sobre as dificuldades que observarem na aplicação das mesmas e os fatores que contribuem para a violência contra a mulher. ” (CONVENÇÃO INTERAMERICANA para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, 1994)
Com a Lei Maria da Penha houve uma alteração expressiva da estrutura e das práticas do Poder Judiciário brasileiro. A partir de 2006 ocorreram mudanças positivas ocorreram no país, como a criação e instalação de varas e juizados de competência exclusiva ao tratamento de ações referentes aos crimes previstos na norma praticados contra mulheres; a garantia de assistência social e maior disponibilidade de profissionais responsáveis pelo atendimento de vítimas. Estas, que por vezes sofriam agressões há anos, foram encorajadas a denunciarem seus agressores. As denúncias apresentaram um crescimento de cerca de 40%, visto que antes as vítimas não denunciavam seus agressores por medo de represarias ainda mais graves que as denunciadas. As mulheres passaram a se sentirem mais autônomas e seguras diante de opressões, já que com a existência da lei era certo que haveria uma punição a seus agressores.
Contudo, o Estado ainda é negligente por falta de ações tomadas para coibir e prevenir atos violentos contra a mulher, focando apenas na punição a quem infringe a lei. Falta ao poder público agir com responsabilidade, possibilitando, assim, ações que visem a criação de projetos para resolver o problema supracitado. Como defende o Ministro do STF, Gilmar Mendes:
“O juiz tem que entender esse lado e evitar que a mulher seja assassinada. Uma mulher, quando chega à delegacia, é vítima de violência há muito tempo e já chegou ao limite. A falha não é da lei, é na estrutura, disse, ao se lembrar que muitos municípios brasileiros não têm delegacias especializadas, centros de referência ou mesmo casas de abrigo. ” (MENDES, 2016)
É dever da administração pública criar mecanismos para realizar a proteção das vítimas de violência. Enquanto a lei é responsável para garantir os direitos das mulheres violentadas, o papel do governo é de proporcionar condições favoráveis na proteção da vítima, construindo abrigos dignos com profissionais competentes para a ressocialização de um ser humano que sofreu traumas psicológicos, físicos e moral.
A Lei Maria da Penha, todavia, abrange violências ocorridas no âmbito doméstico, familiar e de relações afetiva, não tratando, desse modo, dos abusos ocorridos no espaço público e da desigualdade no mercado de trabalho.
Em média, no Brasil, as mulheres recebem um salário 27% inferior ao dos homens. Para a represente do Escritório da ONU Mulheres no Brasil, Nadine Gasman, tal fato tem a ver com o preconceito com a contratação feminina por conta de gravidez e por ser visto como um sexo “frágil”.
Nessa perspectiva, a violência contra a mulher, seja qual segmento se fizer presente, tem fundamentos estruturais e tem sido um dos mecanismos que funcionam como impedimento ao acesso a posições de igualdade em todas as esferas da vida social, incluindo a vida privada.
Nessa perspectiva, a violência contra a mulher, seja qual segmento se fizer presente, tem fundamentos estruturais e tem sido um dos mecanismos que funcionam como impedimento ao acesso a posições de igualdade em todas as esferas da vida social, incluindo a vida privada.
Apesar dos avanços gerados pela Convenção de Belém, ainda está muito longe de assegurar total autonomia e a plenitude de direito às mulheres. Diariamente milhares de mulheres ainda enfrentam situações que chegam à barbárie resultado de uma cultura e sociedade machista, onde a mulher é vista como propriedade, com a qual o homem pode fazer o que bem entender.
Considerações finais
Atualmente, a Lei Maria da Penha possui importante papel no avanço dos direitos das mulheres, uma vez que até o 2006 não havia uma lei específica para tais casos, sendo estes tratados como situações corriqueiras, e julgados como crimes de menor potencial ofensivo, possuindo punições brandas. Devido a mudança desta realidade, algumas mulheres sentem-se seguras para denunciar seus agressores, pois a elas são oferecidas medidas protetivas. No entanto, uma parcela delas ainda encontra-se amedrontas e envergonhadas por conta do julgamento social ainda ser ofensivo contra a vítima, muitas vezes sendo feitos comentários maldosos quando a agressão é recorrente. O cenário piora quando a violência é sexual, levando em consideração a ainda existente “cultura do estupro” que insistir em achar meios de culpar a vítima pelo crime sofrido.
As violências domésticas praticadas contra a mulher ocorrem devido a uma relação de poder que vai além, transformando-se em um costume, existindo ainda hoje a visão de que “em briga de marido e mulher, ninguém mete a colher”. Neste sentindo, a violência sexual cometida pelo companheiro, dentro do âmbito doméstico é facilmente velada, pois se encontra imersa em uma sociedade de valores e tabus que identificam o ato sexual como um dever das mulheres dentro de relacionamentos amorosos, uma vez que, historicamente, à elas cabia a função social de reprodução biológica.
Por fim, para que ocorra uma real diminuição da violência contra a mulher é necessário a ver uma superação da condição desigual da mulher na sociedade brasileira, sendo, para isso, fundamental, políticas públicas de conscientização da pluralidade cultural existente no país, para um maior entendimento que nessa realidade não existe superior nem inferior, e sim uma linha horizontal. Ainda, é primordial que haja um controle para que as leis que tangem sobre a questão de igualdade salarial entre homens e mulheres sejam respeitadas.
Referências
Mirela Ibiapino Marques Cunha é estudante da graduação do curso de Licenciatura em História pela Universidade Estadual do Maranhão (UEMA).
Victor Gabriel de Jesus Santos David Costa é estudante da graduação do curso de Licenciatura em História pela Universidade Estadual do Maranhão (UEMA), e membro do Núcleo de Pesquisa em História Contemporânea (NUPEHIC).
ALVIM, Marcia Cristina de Souza. O direito da mulher e a cidadania na Constituição Brasileira de 1988. In: BERTOLIN, Patrícia Tuma Martins; ANDREUCCI, Ana Claudia Pompeu Torezan. Mulher, Sociedade e Direitos Humanos. São Paulo: Rideel, 2010.
CONVENÇÃO INTERAMERICANA para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, 1994.
O GLOBO. Para aplicar Lei Maria da Penha, Justiça tem que 'calçar sandálias da humildade', diz Gilmar. Disponível em: http://extra.globo.com/noticias/brasil/para-aplicar-lei-maria-da-penha-justica-tem-que-calcar-sandalias-da-humildade-diz-gilmar-259307.html.
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